No dia 13 de agosto de 2019, quando uma pandemia era inimaginável e as aglomerações não apresentavam um risco à saúde pública, muitos içarenses foram em frente à prefeitura para recepcionar Carolaini e Sabrina Pereira e Izabel Cardoso.
As três jovens caratecas do Sul catarinense foram, no dia 8 de agosto de 2019, orgulho nacional, com a conquista da medalha de bronze nos Jogos Pan-americanos, em Lima, na categoria kata.
A conquista é a ponta do iceberg de um projeto que se iniciou muito antes, com o pai de Carolaini e Sabrina, Everaldo Pereira. Aos 16 anos, o hoje coordenador do Projeto Formação de Atletas Mampituba/Team Everaldo/FME Içara conheceu o karatê por intermédio de um primo que começou a praticar o esporte.
Foi o ponto de partida para o que mais tarde, em 2009, depois de acumular experiência de atleta, professor, técnico e treinador, Everaldo Pereira, criou junto ao município de Içara: uma ação social desenvolvida por meio do esporte que transforma jovens da região em atletas de alto rendimento.
Everaldo Pereira disputou competições no karatê e conquistou medalhas. O amor ao esporte foi passado de pai para as filhas e hoje ele é técnico de Sabrina, Carolaini e Emilly Pereira, de 23, 20 e 12 anos, respectivamente; as filhas faixa preta.
Conciliando a emoção de pai com a responsabilidade de treinador, o time prosperou e atingiu o ponto mais alto, até o momento, em Lima no Pan-americano, com a medalha de bronze. Atletas da Seleção Brasileira de Karatê, Carolaini e Sabrina não pensam em deixar Içara para treinar em outros locais.
“Tenho a oportunidade de treinar na Áustria, Bulgária, mas foi o Everaldo quem fundou tudo isso e é ele quem vai alavancar ainda mais", revela Carolaini.
O início de tudo
O mestre de Everaldo no karatê foi o sensei Pedro Gerardi, depois de começar com o sensei Oliveira. Com a evolução no esporte, nasceu o gosto de Everaldo pelas competições. Daí para a transição entre atleta e treinador foram poucos passos, mas com muito estudo, treinamento, cursos e palestras.
"Eles (atletas) vão me empurrando. Eu era carateca, meus alunos me fizeram professor. Os alunos viraram atletas e me fizeram virar técnico. Depois no alto rendimento, tive que ser treinador. Hoje tenho credenciamento de técnico internacional, para poder acompanhá-los. Eles me empurram e eu vou trazendo eles", conta Everaldo.
Depois de treinar em Araranguá, Criciúma e Sangão, Everaldo conquistou alunos. Começou com três ou quatro, até virar 25 e as medalhas tornaram-se frequentes. “Criei o núcleo em Sangão. Depois de alguns meses eu fui numa competição em São Ludgero e ganhamos muitas medalhas, ali eu vi que era bom em ensinar karatê".
Até 2009, o trabalho foi feito com mensalidade, tanto com atletas de alto rendimento quanto com os alunos. Nesse ano surgiu a parceria com o município de Içara. "Aqui ninguém paga mensalidade, para conseguir pegar todas as classes sociais, é o karatê de inclusão. Passaram vários prefeitos e partidos e o projeto continua em pé", orgulha-se Everaldo.
Em parcerias com o Mampituba, Satc, prefeituras de Içara e Rincão, o projeto é dividido em vários núcleos; os jovens destaques e com maior projeção de evolução são realocados para o treinamento de alto rendimento.
Da Vila Nova e Presidente Vargas, bairros de Içara, por exemplo, saem campeões brasileiros, sul-americanos; atletas de alto rendimento. Também do Rincão, como é o caso de Taiane Teixeira, nova parceira de Sabrina e Carolaini no katá.
"Trabalha o gordinho, o magrinho, aquele que o pai quer tirar do computador. A quantidade faz a qualidade. O aluno vira atleta, e o atleta vira atleta de alto rendimento. Neste dojo de Içara saíram campeões regionais, estadual, nacional, sul-americano, pan-americano, mundial e dos Jogos Pan-americanos", aponta Everaldo.
Em Içara, são 160 alunos; no time de alto rendimento, três recebem bolsa nacional de apoio ao esporte, no valor mensal de R$ 1 mil, e quatro a bolsa internacional, no valor de R$ 1,8 mil. As bolsas são benefícios concedidos ao atleta medalhista em etapas brasileiras e sul-americanas ou mundiais, respectivamente, desde que sejam competições federadas e credenciadas no Comitê Olímpico. "Hoje nosso karatê é referência. Tu vais ganhando, os atletas na Seleção, tu viras uma referência", revela Everaldo.
"Içara hoje é referência no karatê nacional. Tem que ter um estímulo diferente para ter a quantidade de alunos e eu faço isso com amor e muita vontade. Temos um projeto muito bacana para os próximos anos. Temos alunos prodígios que vão conquistar esse símbolo de ser o exemplo para o esporte", projeta o técnico.
Pan-americano
Da barriga da mulher, Everaldo sentia os golpes de Sabrina e Carolaini. O pai brinca, sério, que as filhas já saíram da maternidade de quimono. Sabrina diz séria, mas brincando, que desde bebê engatinhava no tatame.
Como filha mais velha, em companhia do pai, Sabrina começou no karatê aos três anos; a do meio, Carolaini, iniciou no esporte um pouco mais tarde, aos cinco. A competição e o esporte são intrínsecos à dupla de caratecas.
Para o Pan-americano de Lima, Everaldo Pereira revela que faltava a terceira parte do tripé. “Tínhamos duas atletas 100% preparadas, a Sabrina e Carolaini, e outras duas que poderiam compor a equipe, a Taiane Teixeira e a Izabel Cardoso"
"A Izabel tinha dito que não era o foco dela mais. A Taiane não se sentia preparada, mas nós fomos atrás das duas até a Izabel decidir que iria conosco mais um ano”, relata Everaldo.
O trio Carolaini, Izabel e Sabrina disputaram a categoria kata, na qual as etapas consistem na apresentação de golpes, defesas, ataques e contra-ataques, com adversário imaginário. Everaldo Pereira assistiu aos golpes finais das filhas e de Izabel de Içara, pois elas foram acompanhadas na competição pela técnica da Seleção Brasileira – posto ocupado por Everaldo em 2012.
"A medalha do Pan-americano representa o que é programado e planejado. Traçamos a meta de treinamento, fomos algumas vezes com o técnico da Seleção Brasileira em São Paulo, ele veio para cá algumas vezes. De cada competição que elas participaram, na Áustria e na Espanha, por exemplo, elas voltavam mais cascudas e querendo mais. Foi feita essa preparação fantástica e estar lá representando o Brasil na Vila Olímpica foi muito legal. Com essa medalha conseguimos conquistar o Prêmio Olímpico, de revelação em 2019", celebra Everaldo.
Para Carolaini, a conquista da medalha de bronze em Lima foi o ponto mais alto até o momento na carreira.
"Eu me descobri naquele momento. O esporte é complicado, um turbilhão de emoções. Aquela competição foi quando eu entrei em sintonia, entre o emocional e a parte técnica, ali eu senti todo o profissionalismo, senti que eu sabia o que estava fazendo. Tive a certeza que quero seguir isso para a vida, ser atleta profissional", comenta.
Sabrina, a mais velha do time, ressalta a importância das conquistas para os jovens que sonham tornarem-se atletas de alto rendimento. "Para as crianças é um exemplo vivo. Dizer ‘olha, eu treino com a menina campeã mundial, medalhista não sei quantas vezes'. Estão vendo que não é uma vida diferente, de estar nos vendo todo o dia, saber como treinamos e vivemos. É uma coisa real, não de outro mundo. Está aqui. Basta eles quererem para serem campeões".
Conquista na terra
A equipe de kata atualmente é formada por Sabrina e Carolaini Pereira e Taiane Teixeira. Taiane entrou no karatê pelo projeto social no Rincão; tudo começou quando passaram na sala do irmão, em 2009, apresentando o esporte. Ele interessou-se, pediu aos pais e começou a praticar. A irmã gostou e foi junto.
“Eu tinha sete anos na época. De lá para cá a coisa foi crescendo, criando amor aos poucos. Tenho muito orgulho da trajetória até aqui, tenho grandes aspirações com as irmãs de quimono”, afirma Taiane.
Ao lado de Sabrina e Carolaini, Taiane quer aproveitar as competições e viagens, conquistar medalhas e ser exemplo aos mais jovens. "É uma honra treinar ao lado delas, são duas feras. Por onde a gente passa, elas são reconhecidas. A gente fica do lado pegando o flash das fotos junto, vamos colando nelas para ganhar um pouco de espaço", brinca.
Atualmente bolsista nacional de karatê, ela está na Seleção Brasileira desde 2018 e já teve acesso à bolsa internacional, sendo terceira colocada em uma competição sul-americana. Taiane projeta continuar como atleta de alto rendimento, conciliando os treinos com a faculdade de administração: o foco, depois disso, é contribuir com a equipe na nova área profissional.
"É gratificante ver o tamanho que a nossa associação se tornou, em todos os lugares que fomos. Quando comecei, era inimaginável. Agora temos o dia a dia de atleta, a nossa vida gira na volta do treino. Comecei a faculdade para ser algo diferente e contribuir com a equipe futuramente na administração”, conta.
Carolaini e Sabrina mantêm o foco total no alto rendimento. A mais velha é formada em educação física, enquanto a mais nova está em processo de formação em licenciatura. Aos 23 anos, Sabrina é tida como o exemplo a ser seguido, tanto para a equipe de kata quanto nos treinos de alto rendimento em Içara.
É uma relação mútua, entre cidade e atletas. "Nossa Içara é maravilhosa. Sempre nos deu suporte, tínhamos uma estrutura boa, temos ainda, agora readaptando, até por conta da pandemia. O que é de casa tem que ser valorizado. Por opção nossa ficamos aqui, é o nosso celeiro", declara Sabrina.
Carolaini revela ter recebido propostas para treinar em grandes clubes do Brasil, como Pinheiros e Flamengo, mas por alguns motivos, além da gratidão ao técnico e pai, Everaldo, optou por permanecer em Içara. “Fomos criadas aqui, começou o projeto de inclusão aqui. É muita história. Deixar tudo por um dinheiro que talvez não dê a conquista... Prefiro dar os méritos para a nossa cidade", explica.
"Aqui tenho maior desenvolvimento como atleta, por causa da emoção. É mais gostoso trazer a medalha para cá, treinar com a nossa equipe. Se a gente competisse por outro lugar, não seria tão grandioso. O reconhecimento de quem é da nossa terra foi muito gratificante. Nos receberam de braços abertos (após a conquista do Pan). O tanto de mensagens e energias positivas que recebemos, não tem preço que pague", completou.
As duas irmãs miram alto no esporte. Sabrina sonha com os jogos Olímpicos no kumite, categoria individual de luta diretamente contra o adversário. "Falta mesmo a medalha olímpica. Eu estava na briga ano passado, mas a pandemia atrapalhou muito, acabei prejudicada no ranqueamento”, lamenta a atleta.
“Eu estava classificada para o qualifying deste ano, mas com a pandemia faltaram três etapas e não consegui participar. A gente passa por vários altos e baixos na vida, mas não podemos desistir", completa Sabrina.
Carolaini também almeja o sonho Olímpico enquanto atleta de karatê. “Não me vejo dando aula antes de conquistar o mundo. Posso até ajudar outras pessoas e até a mim mesmo tendo um desempenho maior pelo estudo, mas não imagino dando aula antes de encerrar a carreira como atleta", projeta.
De olho no futuro
A equipe içarense almeja mais medalhas. "Algumas pessoas falam que somos revelações e conquistamos muita coisa. Eu acredito que ainda vamos conquistar muitas coisas. Estamos perto do objetivo, mas falta muito para alcançar”, revela Everaldo.
Os alunos começam cedo, aos seis anos de idade; as mais velhas servem de exemplo. "Eles são como se fossem meus filhos. A gente vê crescendo. A Ágata a gente vê treinar desde os seis anos, ela estava com a gente nos campeonatos", comenta Sabrina.
"Eles se inspiram em tudo na gente, desde o penteado de cabelo. Em uma seletiva nacional, tudo elas querem saber da gente, o que a gente já viveu. Antes da competição a gente auxilia bastante", completa Carolaini.
Ágata Pedroso, 14 anos, lutou karatê pela primeira vez no bairro Presidente Vargas, onde mora. Aos seis anos, foi aluna do projeto social de Içara e o esporte tornou-se fundamental na vida. "Me sinto livre no karatê, é praticamente a minha vida. Treino desde pequena, sem o karatê ficaria um grande espaço vazio. A maior parte da minha vida é o karatê, inclusive as amizades"
Ela está na Seleção Brasileira de kata desde o ano passado, mas ainda não participou dos treinamentos e nem de competições sul-americanas por causa da pandemia. A jovem sonha alto. "O máximo é as Olimpíadas, mas o foco agora é a Olimpíadas Juvenil, um projeto que nós temos. Precisa treinar muito e passar nas etapas de qualificação", projeta.
Djenifer Lopes começou a treinar aos 12. Sentia-se insegura em meio aos colegas com mais tempo de treino, iniciando mais jovens do que ela. Moradora no bairro Jaqueline, quase desistiu do karatê, mas desdobrou-se nos treinamentos. Dois anos depois, aos 14, ingressou na Seleção Brasileira de kumite. “De vez em quando eu até treinava em casa, repetição do que a gente aprendia no treino, eu dava uns golpes e a minha mãe ficava pensando o que estava acontecendo", relembra a atleta.
Ela estaria no sul-americano da Bolívia, assim como Ágata, que não ocorreu por conta da pandemia. "Objetivo grande de todos é a Olimpíadas, mas no momento eu quero ganhar o Sul-americano que ainda não tive a oportunidade e estou com muita vontade de competir", revelou Djenifer. Ela ingressou na Seleção Brasileira em 2019 depois de vencer uma luta na etapa nacional.
"Foi meu segundo campeonato brasileiro e foi uma emoção muito grande, não consigo explicar. Eu achei que não iria conseguir, mas foi por lutas, ganhando uma eu passava e sabia disso. Assim que ganhei a luta, comecei a chorar", conta.
O esporte muda a vida
"Eu acho que o karatê me ajudou muito em tudo na vida. Pretendo continuar, nem que seja só para esporte mesmo. Meu ciclo de amizade é 90% do karatê. Sem eles minha vida não seria como é. Eles são a minha segunda família, posso confiar em todos de olhos fechados", afirma Djenifer.
Mais do que amizades, o esporte interfere diretamente no corpo e na saúde. Hoje com 15 anos, Isaac Pacheco, aluno de Içara e atleta da Seleção Brasileira, curou-se de um tumor maligno há cinco meses. "O karatê me ajudou a superar a dor e não ficar nervoso nos momentos difíceis", conta.
"Eu descobri o tumor aqui no karatê, nos treinos eu cansava muito e os meus amigos não estavam cansados como eu. Conversei com a mãe, fui ao médico e descobri o tumor. A família karatê me apoiou no tratamento e eu fiquei muito feliz. Eu amo eles", afirma.
No esporte, o jovem mantém os sonhos. "Meu sonho é ser campeão Olímpico. Tenho pela frente muito treino, tenho que me esforçar sempre mais", projeta. "Para mim karatê é vida. O karatê me salvou, ajudou muito. É força e vida", conclui Isaac.
Dessa forma, o karatê içarense projeta mais conquistas, sempre de olho nas Olimpíadas. O coordenador e técnico, Everaldo Pereira, hoje com 44 anos, comemora o passado e trilha novas glórias para todos.
"Brilha o olho quando você diz que o karatê proporcionou a alunos da parte social em receber bolsa internacional de R$ 1,8 mil, de R$ 1 mil em bolsa nacional, que tiveram oportunidade de andar de avião, ir para outros países e conhecer novas culturas, tivemos alunos que foram para a Espanha, Indonésia, Itália, Colômbia, Equador... Eles olham o horizonte e se perguntam se são capazes. E são. Temos um celeiro de talentos, muita gente boa e que falta só a oportunidade".