O Presídio Regional de Araranguá favorece a atuação das facções criminosas, põe em risco a segurança dos policiais penais e pode trazer consequências graves para a sociedade. A avaliação é da juíza Livia Borges Zwetsch Beck, corregedora da unidade.
A magistrada concedeu entrevista ao programa Adelor Lessa, da rádio Som Maior, na manhã desta terça-feira (6). Ela não poupou adjetivos ao classificar a unidade como a pior de Santa Catarina e “formadora e amplificadora de facções criminosas”.
Ouça a entrevista completa (o texto continua em seguida):
A juíza lembrou que o presídio de Araranguá enfrenta problemas estruturais há mais de uma década, com instalações precárias e superlotação crítica. “Há dez anos o presídio regional de Araranguá está interditado. Com uma capacidade original de 128 presos, foi readequada para 240. Hoje, está interditado totalmente”, explicou. Hoje o presídio recebe 360 presos.
"Já se tem a conclusão, tanto por parte do Poder Executivo, da Vigilância Sanitária, do Poder Judiciário, de todos que já trabalharam neste processo, que a única forma de resolver a questão do Presídio Regional de Araranguá é demolir e construir uma nova unidade", afirmou.
Inércia do poder público
A corregedora criticou a inércia do poder público em enfrentar a raiz do problema, o que resulta em criminalidade e insegurança social. Ela explicou a dinâmica que se estabelece quando os presos são forçados a se aliar às facções para sobreviver dentro da prisão.
“A questão de segurança pública é muito mais séria do que a criminalidade que já está na rua. O presídio, hoje, serve como forma de exclusão social e como formador e amplificador de facções criminosas. Nós temos três ou quatro tipos de facções diferentes no presídio regional de Araranguá. É preciso separar. Qualquer um que você coloca lá, ou ele entra junto, ou ele adere aos princípios da facção", detalhou a juíza Livia Borges.
A situação é agravada pela mistura de presos provisórios com condenados, contrariando as diretrizes da Lei de Execução Penal e do Código Penal. A magistrada também fez críticas à falta de políticas eficazes de assistência e reintegração ao egresso, e destacou as iniciativas de treinamento profissionalizante como passos na direção certa, ainda que insuficientes.
“As pessoas que estão lá vão sair e vão entrar nas nossas casas, nas nossas lojas, pela porta da frente ou pela porta dos fundos. A gente vai escolher? Está muito claro o que está sendo escolhido, não é?”, refletiu.
Em relação às ações do governo, a juíza mencionou o atraso na licitação para as obras necessárias para a reconstrução do presídio. Além de criticar a justificativa do governo de que a questão não seria uma prioridade e apontando para a necessidade de uma ação judicial para forçar o avanço do processo.
Muitas decisões, muitos recursos, nada de obra
O Ministério Público ajuizou uma ação nesse sentido em 2013. Entre petições, decisões, recursos e providências relacionadas a presos individualmente, o processo em primeiro grau já teve mais de 4 mil movimentações.
Ao longo da década que se seguiu, houve casos de presos que precisaram ficar detidos nas delegacias a ponto de começarem a exalar mau cheiro pelo tempo que ficavam sem tomar banho. A situação era insalubre especialmente para os servidores da Polícia Civil e os cidadãos que buscavam atendimento nas delegacias.
No presídio, os policiais penais frequentemente têm que entrar nas celas e ocupam o mesmo espaço destinado aos apenados. Segundo a juíza Livia Borges, eles só sobrevivem porque os presos têm aceitado as ordens até o momento.
Em novembro do ano passado, a magistrada deu um ultimato ao Governo do Estado. Por meio de decisão liminar, ela mandou contratar a empresa para a construção do presídio até o dia 30 de dezembro. O investimento previsto era de R$ 57,7 milhões.
“Quadro de atrocidades”
A magistrada registrou nos autos que é “inadmissível continuar convivendo com esse quadro de atrocidades, com presos submetidos a situações desumanas e degradantes, servidores públicos expostos a condições de trabalho insalubres e perigosas, diante da omissão, inércia e negligência estatal”.
No fim de dezembro, a Procuradoria Geral do Estado recorreu ao Tribunal de Justiça e livrou o Estado da obrigação. A derrubada da liminar foi publicada na imprensa e nas redes sociais como uma vitória do órgão. O argumento é que a despesa não estava prevista na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2023.
Para o procurador-geral do Estado, Márcio Vicari, a atuação se deu para garantir a segurança jurídica e administrativa dos atos da gestão pública, e não para impedir a realização da obra.
“É preciso atentar-se ao componente financeiro, que é por essência um sistema binário: existem ou não recursos para a realização da despesa. A necessidade de executá-la não autoriza que isso ocorra com violação à lei orçamentária”, argumentou na ocasião.
Na decisão que suspendeu a ordem da juíza de Araranguá, o desembargador substituto Renato Luiz Carvalho Roberge frisou que a responsabilidade é do Executivo, não do Judiciário.
"O juízo da Execução Penal é incompetente para adotar tal medida. O Estado-Juiz não pode acomodar-se na condição de expansor do sistema prisional estadual. Quem deve resolver o problema do sistema prisional é sempre o Poder Executivo", escreveu o magistrado.
Entre a primeira petição do Ministério Público e a decisão do desembargador, passaram-se dez anos, seis meses e quatro governadores sem que o Poder Executivo resolvesse.