Uma letra recheada de metáforas. Com a ideia inicial de homenagear o recém falecido Charles Chaplin naqueles fins de 1977 (E um bêbado trajando luto... me lembrou Carlitos...), acabou abraçada pelos presos políticos e exilados, que àquela altura avolumavam a luta pela volta da liberdade política no Brasil. O regime militar ainda dava as cartas, mas era crescente a pressão pela volta da democracia. A transição que estava por vir, de Ernesto Geisel para João Figueiredo na presidência, era um sinal de uma "abertura lenta e gradual", como gostavam de dizer os militares de alta patente que comandavam o país.
Nesse contexto, a composição já citada, "O Bêbado e a Equilibrista", caiu em cheio no gosto dos que lutavam por essa abertura. E seu autor, Aldir Blanc, teve a impecável parceria de João Bosco e a nitidez da voz impactante de Elis Regina para eternizar a canção. Mais uma página importante dessa história se apagou nesta segunda-feira, 4. Blanc faleceu, vítima de Covid-19. Em um período, de novo, no qual tanto se discute a democracia - na véspera da sua morte houve mais um protesto, com epicentro em Brasília e replicado em várias partes, com algumas faixas e bandeiras defendendo 'Intervenção militar já' -.
"Acabamos de perder Aldir Blanc. A MPB está de luto", afirmou Everaldo João, apresentador da Rádio Som Maior e conhecedor da música brasileira. "O Bêbado e a Equilibrista" é um marco, mas não a única composição de Blanc. "Ele não representa apenas essa música não. Ele fez essa com nosso amigo João Bosco, outro talento irretocável da MPB. Aldir Blanc foi parceiro de grandes mestres como Ivan Lins, Roberto Menescal, Wagner Tiso, entre as músicas conhecidas, letras maravilhosas, está essa daí, Elis Regina gravar um compositor era um sonho, ela imortalizou essa música. Mas tem outras com João Bosco e outros compositores", destacou.
Blanc estava internado em um hospital de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Ele deu entrada em outra unidade de saúde no dia 10 de abril com pneumonia e infecção pulmonar, quadro que só se agravou desde então. Foi necessária uma campanha de amigos e artistas para que ele fosse acolhido em um leito da rede pública, para receber o tratamento que recebeu até a morte. "Ele tem muitas músicas emblemáticas da MPB. Ele deixa uma lacuna enorme na história da música brasileira. É uma perda irreparável, e para o Covid-19", lamentou Everaldo.
Composição corajosa
"O Bêbado e a Equilibrista", na sua riqueza de metáforas, tinha uma série de menções que poderiam sucumbir à implacável censura, mas a inteligência de Blanc e Bosco na composição permitiu um drible que, hoje, torna possível uma interpretação do que era dito nas entrelinhas da canção. "Foi no foco, no calor da censura, da ditadura militar, do regime. Ele defendia na letra a volta do irmão do Henfil, que tinha sido deportado do Brasil", lembrou Everaldo.
Abaixo, uma interpretação da letra da música de Blanc e Bosco compartilhada pelo site Letras de Músicas:
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A letra começa em tom de desesperança, representada pelo fim repentino do dia. A menção ao viaduto é uma referência ao elevado Paulo de Frontin, que desabou no Rio de Janeiro em 1971, deixando dezenas de mortos e feridos.
De forma irônica, Aldir Blanc se refere ao otimismo do período como uma ilusão tão frágil quanto uma obra malfeita. Além disso, temos a figura de Carlitos, personagem mais famoso de Chaplin, que representa a classe trabalhadora, a mais afetada pela situação.
Também é possível entender o personagem como um representante da classe artística, uma vez que as roupas pretas de Carlitos simbolizariam o luto pela falta de liberdade.
A Lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
A Lua é utilizada aqui no sentido figurado para se referir a políticos que defendiam o regime militar por interesses particulares. Sem luz própria, ela recorre às estrelas frias (militares poderosos) em busca de um brilho de aluguel (ganhos eleitorais e pessoais).
Ou seja, tal qual a cafetina dona do bordel, que explora as prostitutas para benefício próprio, esses políticos se vendiam ao regime, às custas da exploração do povo e dos recursos do país, para obter ganhos pessoais.
E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!
O mata-borrão era um papel absorvente, usado para remover excessos de tinta das canetas-tinteiro. Ou seja, um utensílio para eliminar erros.
Assim, o verso e nuvens no mata-borrão do céu se refere às torturas e desaparecimentos promovidos pelo regime militar. Os torturadores são representados pelas nuvens, enquanto o mata-borrão simboliza o DOI-CODI, órgão de repressão do governo.
Durante o período, era comum que opositores fossem eliminados pelos militares, que forjavam situações para justificar e abafar as mortes.
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil!
A figura do bêbado com chapéu-coco é mais uma referência ao personagem Carlitos, usado aqui como representante do povo brasileiro.
Assim como Carlitos, que mantinha a irreverência diante das dificuldades, o povo continuava a tentar levar a vida com bom humor, acreditando que dias melhores chegariam.
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil
Para o letrista, era um desejo de toda a sociedade que pessoas exiladas, como Betinho, retornassem ao Brasil.
Além disso, ele menciona a dor de Marias e Clarisses, em referência às mães e viúvas de presos políticos, como Maria, esposa do metalúrgico Manuel Fiel Filho, e Clarice, esposa do jornalista Vladimir Herzog, ambos torturados e mortos pelo regime.
Um verso do Hino Nacional também é usado para ironizar o sentimento de nacionalismo, denunciando que os cidadãos brasileiros são mortos e exilados por um Estado que deveria protegê-los.
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
A música, que começa em tom de desalento, termina com uma mensagem de fé: toda a luta de pessoas contrárias ao regime, que sonhavam com a abertura democrática, não seria em vão.
A esperança, mesmo que frágil e andando de sombrinha na corda bamba, existia.
Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar
Ainda que o período fosse de incertezas, tanto o povo quanto a classe artística deveriam seguir em frente, equilibrando suas esperanças na corda bamba. Afinal, a vida só tem um sentido: a frente.