O curso de Medicina da Universidade Federal de Curitiba, no Paraná, abrigava bem mais de 700 alunos quando fui admitido em seu curso em 1954, após exame vestibular escrito e oral. A convivência entre esse agrupamento humano, gente vinda de toda parte, era mais harmonioso e afetuoso do que se possa imaginar. O simples fato de sermos alunos da mesma escola médica servia de senha para tratamento recíproco amistoso. Trocávamos informações, conhecimento e nos auxiliávamos a todo e qualquer momento.
A título de exemplo recordo o colega Nazir Soubhia, formado em 1960, um ano após minha turma, e que, para poder estudar Medicina trabalhava como locutor da Rádio Marumby altas horas da noite no programa Tangos e Poemas. Com o salário assim obtido, ele se mantinha. Era de Monte Aprazível, SP e vivia como Deus é servido. No auge de problemas financeiros insolúveis, aparece certa noite em nosso apartamento, república melhor dito, um colchão de muitos anos de uso, amarrado toscamente com barbante idem e outro pacote que anunciou conter alguns (poucos) livros e roupas (bem poucas). Declarou que estava se mudando e se juntando a nós. Diante da declaração de que todas as vagas estavam ocupadas no apartamento, decidiu colocar o colchão na (minúscula) sala de visitas e nele deitou-se.
Em pouco tempo, já enturmado, perguntava:
- Dinheiro, não tenho; pagar lavadeira – como vocês – nem pensar. Posso utilizar os serviços desta funcionária, para acertar mais tarde?
Barretinho fez um gesto incompleto, como quem se arrepende. Ia perguntar – na mesma ordem de ideias – sobre compartilhamento de despesas (aluguel, café da manhã, energia, água etc).
Nazir Soubhia, o Turquinho, em seu programa na rádio, focava no horóscopo das pessoas e por isso, logo todos nós participávamos das atrações do programa, vaticinando-nos (para exemplificar) o que nos reservava o dia a dia da cidadania curitibana.
Aprendi que meu signo era Touro e tratei de mimoseá-lo com todas as benesses possíveis. Reservei para este signo as namoradas mais bonitas, sucesso nos estudos, premiações fantásticas. Os colegas detentores de outros signos não deixavam por menos e em breve havia uma competição entre nós para determinar qual o signo revestido das maiores glórias.
Foi quando passamos a perceber que nossas melhores roupas, misteriosamente sumiam em determinados períodos. Se houvesse reunião dançante na Medicina (Diretório Acadêmico Nilo Cairo), ou na Engenharia (os melhores) sempre havia alguém a reclamar:
- Cadê calça e camisa arretadas que comprei para o arrasta pé da Engenharia?
Dona Rosita suspendia por momentos seu trabalho, coçava o cocoruto protegido por lenço improvisado, sacudia a cabeça e apontava para o colchão estendido na sala. Nazir só não usava nossos sapatos: não cabiam em seus enormes pés.
Certa noite, terminado seu programa diário-noturno na Rádio Marumby, Turquinho (ó surpresa!), anuncia que na manhã seguinte deixaria nosso convívio, trocado por cobiçada vaga na Casa do Estudante, gratuita como nosso curso em Faculdade Federal e nosso alugado apartamento, gratuito para ele. Turquinho foi nosso calouro, formando-se em 1960.
Na mesma ocasião estudava Medicina na nossa Faculdade, jovem oriundo da Pauliceia Desvairada, cuja principal característica era uma grande, enorme, cabeça óssea. À primeira vista chegava a assustar. Logo, Joaquim de Paula Barreto Fonseca, de Campinas SP, sobrinho do Professor Barreto da Histologia e Embriologia, inventava uma história para ele. Consta – dizia Barretinho – que nosso cabeçudo calouro andava queixando-se à mãe que a Turma pegava no seu pé, que ganhara muitos apelidos (Cabeça, Cabeção, Head). A mãe, é claro, defendia-o.
- É pura inveja. Você é aluno brilhante, estudioso, figura impoluta, caráter sem jaça. Tua cabecinha é quase igual às demais. A propósito: vai para a mãe até o mercadinho e traz 1 dúzia de bananas, 1 dúzia de ovos, 1 lata de azeite, leite, café, pão, manteiga, queijo, 1 garrafa de álcool, algumas laranjas, uma melancia. Leva a caderneta do Haver para anotar a despesa.
- Mãe, tudo bem. Cadê o carrinho para trazer as compras?
- Precisa não, filho. Traz tudo no teu bonezinho!
José Fabrício Alves Pereira, o Boazinha, de Santos SP, participava do excelente time de basquete da Faculdade/Universidade. Era, também, aluno exemplar. Seu único problema era um sono invencível que surgia nas piores ocasiões: na sala de provas, nas aulas, ao encontro das aulas em pleno itinerário através de condução pública, no cinema, no banco de reservas nos jogos. Uma droga. Fez o propósito de dormir apenas nas horas consagradas para tal. Também prometeu acordar mais cedo, já perdera muitas aulas pelo sono fora de propósito que o atormentava. O assunto era tão envolvente que dele participavam professores, bedéis, a faculdade toda.
O assunto chega aos ouvidos de Mário Braga de Abreu, o grande mestre de Clínica Cirúrgica do 5º ano de Medicina. Fazendo pouco caso disse:
- Vai acordar cedo para ficar mais tempo sem fazer nada...
O apelido Boazinha tem origem no esporte praticado por Fabrício, o basquete. A cada lance empolgante ou cesta de grande categoria individual ele se voltava para o público e dizia:
- Boazinha essa...
Da Turma 1961 eram os irmãos Orestes e Osires Florindo Coelho. Osires era notável cestobolista, o Jimmy. Brilharia em qualquer lugar do mundo praticando o que muito sabia fazer como atleta do esporte da cesta. Havia mais: nossos colegas de Turma, Roberto Lencastre Maudanet, José Maria Del Claro, Roberto Quintanilha Braga -, todos grandes atletas.
Fica para outra vez contar histórias de colegas como Nelson Salomé, ao lado do lateral da seleção Roberto Carlos, grandes nomes da cidade de Araras, SP. Também Osvaldo Doreto Campanari (de Marília), Joaquim de Paula Barreto Fonseca (Campinas), Luiz Alencar de Moraes (Dracena, SP), o Ministro da Saúde Valdir Mendes Arcoverde (do Piauí), Zilda Arns (de Forquilhinha, SC) -, todos colegas da Turma 1959 da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná.
FELIZ ANO NOVO DE 2024, GENTE!