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Nur na escuridão

Por Henrique Packter 03/03/2025 - 13:25 Atualizado há 7 horas

NUR NA ESCURIDÃO, livro com o qual SALIM MIGUEL conquistou o PRÊMIO MACHADO DE ASSIS da ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, representa uma luz na História da Imigração árabe no Brasil. Mas, NUR é também o nome dado à ursinha polar, primeira da espécie nascida na América Latina, e no Aquário de SP, indagorinha, em novembro de 2024,  quando é apresentada ao público. Desde o nascimento  esteve num espaço isolado com a mãe, a ursa polar Aurora. Batizada como Nur, em imagens divulgadas pelo Aquário, ela aparece rolando pela área destinada aos ursos polares. Ela corre, explora o espaço e brinca no gelo.

Vinda ao mundo em 17.11.2024, desde o nascimento estava numa espécie de toca com a mãe - a ursa polar Aurora. Ia esquecendo de informar que Nur é filha de Aurora com Peregrino - dois ursos polares nascidos na Rússia e que vivem faz 10 anos em São Paulo.

O nascimento da bebê foi gravado por câmeras que ficam na área dos animais no Aquário. Em imagens divulgadas pela instituição é possível ver o animal nascendo sem pelos .Após o parto, a mãe lambe e depois deita a ursinha no seu corpo, provavelmente para aquece-la. Segundo veterinários do Aquário, o primeiro ano de vida de um urso polar, em especial as primeiras horas, representa período crítico para sua sobrevivência. Por serem frágeis, os filhotes precisam de atenção 24 horas/dia e também monitoramento diário para se intervir, caso exista algum problema.

GESTAÇÃO

Segundo o Aquário, a suspeita da gravidez de Aurora surgiu da observação atenta da equipe às mudanças no comportamento da ursa. Ela começou a passar mais tempo na toca, parecia mais cansada e reduziu a interação com Peregrino. "A separação entre fêmea e macho, no contexto da reprodução de ursos polares, é um comportamento crucial e natural. Na natureza, ursos polares são animais solitários, com exceção do período de acasalamento. Após a cópula, o macho não desempenha nenhum papel nos cuidados com a prole. A fêmea, por sua vez, afasta-se dos machos, buscando um local seguro para construir sua toca e dar à luz", afirmou o Aquário. O macho por perto seria um fator de estresse, vejam só.

ISSO, COM RELAÇÃO À NOSSA URSINHA POLAR NUR. E QUANTO A SALIM MIGUEL, TALVEZ O MAIOR ESCRITOR CATARINENSE?

A imigração árabe de sírios e libaneses no Brasil teve início no final do século 19 e início do século 20, sendo tema de grande relevância histórica e cultural. Estes imigrantes enfrentaram enormes desafios ao se estabelecerem num país com cultura, crenças e língua diferentes. Milhares de famílias de libaneses desembarcaram no Brasil e grande parte desses imigrantes eram cristãos. Somente no século 20, com a derrocada do Império Otomano  (1918), a imigração de libaneses não cristãos (judeus e muçulmanos) passou a ser mais significativa. Aqui chegando, já na primeira etapa, compreendendo os anos de 1880 a 1938, desembarcavam ou no porto de Santos (SP) ou do RJ, estabelecendo-se  tanto aí como partiam para Minas Gerais, Goiás, Amazonas e Sul do Brasil.

Esses imigrantes muito contribuíram para o crescimento econômico brasileiro, também chamando a atenção para uma cultura distante da Europa, até então a grande referência para a formação do nosso cenário cultural. Quantos vieram? Não há como precisar, pois o censo nacional não permite registro da identidade étnica, apenas a racial. Mas, faz pouco, a Câmara de Comércio Árabe Brasileira encomendou pesquisa ao Ibope Inteligência para se aproximar dos números dessa imigração, uma vez que em pesquisas empíricas os números poderiam variar de 3 a 16 milhões de descendentes.  Concluiu-se que a população árabe no Brasil pode variar de 9,50 a 13,70 milhões de pessoas, ou 6% da população br asileira. Essa diáspora se destaca no cenário nacional, pela sua contribuição para a formação cultural e pela crescente presença de seus descendentes na política e na literatura.

as, como classificá-los? Não havia uma  característica identitária definida, não eram brancos europeus, asiáticos, muito menos negros. A identidade étnica-racial, consequência da falta desta identidade, representa na literatura produzida no país por autores brasileiros, o estereótipo do imigrante árabe. É disso que NUR trata.

RESUMO

No centenário de nascimento do escritor líbano-Biguaçu Salim Miguel, analisemos  a história da imigração libanesa no Brasil a partir do  romance NUR NA ESCURIDÃO e a partir do personagem José Miguel, o pai, quando crescentes desafios e dilemas do personagem ressoam com a experiência humana.  

Em 2024 celebramos o centenário da publicação do Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o nascimento do escritor líbano-brasileiro SALIM MIGUEL, radicado desde sempre em Florianópolis. Data oportuna para considerarmos a formação da nossa identidade. O Manifesto da Poesia Pau-Brasil é divisor de águas do Modernismo, segundo o próprio autor, Oswald de Andrade, o qual   articula o projeto da construção da identidade da cultura brasileira. Desconsagrando a cultura imposta pela colonização, busca a nacionalidade pela recuperação e valorização de nossas raízes étnicas híbridas. Já as comemorações e celebrações do centenário de nascimento  de Salim Miguel, permitem refletir sob re Nur na Escuridão (1999), na medida em que ele fornece testemunho da assimilação e integração de uma família de imigrantes no Brasil.

Machado de Assis, ícone da literatura brasileira, tratando em suas crônicas destes imigrantes já esboça um Orientalismo Tropical, na medida em que a visão estereotipada do cotidiano desse imigrante não é apresentada negativamente, mas de forma positiva e com o refinado humor machadiano. No século 20 Jorge Amado e Oswald de Andrade seguem o modelo.  Autores descendentes da Diáspora só viriam a partir da segunda metade do século 20. Com a fixação dos imigrantes no Brasil e sua inserção em diferentes segmentos da vida cultural brasileira, o século 20 colocaria os descendentes dos primeiros imigrantes no protagonismo da produção literária brasileira, na medida em que pro duzem literatura com tomada de consciência de sua identidade, reproduzindo suas angústias e questionamentos.  Além de Salim Miguel há Raduan Nassar em Lavoura Arcaica (1975), narrada do ponto de vista do imigrante, e que expõe a história da imigração e os conflitos existenciais que envolvem diaspóricos e seus descendentes. Milton Hatoum (1989) publica obra-prima da literatura brasileira contemporânea, Relatos de um Certo Oriente, romance que se destaca por sua poética narrativa, densidade temática e habilidade em retratar as complexidades das relações familiares, bem como as tensões sociais e culturais vividas pela família de libaneses estabelecida em Manaus. Hatoum  mistura passado e presente, revelando as intricadas relações entre os membros da família. Contada através de múltiplas vozes , oferece perspectivas para a compreensão dos personagens e suas motivações.

O líbano-Biguaçu Salim Miguel, também autor filho da diáspora, tem no romance NUR NA ESCURUDÃO (1999) a história da imigração árabe no Brasil através da inserção da família Miguel na sociedade, mas que poderia ser de qualquer outra família sírio-libanesa . Nascido no norte do Líbano, no vilarejo de Kfarsaroun,  distrito de Khoura (1924), Salim Miguel e sua família chegam ao Brasil quando ele contava três anos de idade. Foi um dos líderes do Grupo Sul, movimento artístico e literário que levou o modernismo para SC,  transformando o ambiente cultural local nas décadas de 1940 e 1950. Também atuou como jornalista, tinha livraria, foi um dos editores da revista literária Ficção no RJ.  Com Cruz e Sousa são os mais importante escritores de SC. De 1983 a 1996, ocupou cargos de chefia na Editora da UFSC e na fundação cultural de Florianópolis.

Em 1999, o romance autobiográfico Nur na Escuridão ganha os prêmios de melhor romance da Associação Paulista de Críticos de Arte  e da Nona Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Em 2009, Salim Miguel  ganha o Prêmio Machado de Assis concedido pela Academia Brasileira de Letras. 

Yussef/José Miguel, personagem central, representa as lutas e triunfos enfrentados pelos imigrantes libaneses no Brasil. “Nur na escuridão” trata da adaptação do imigrante libanês, especialmente através da trajetória do personagem principal, José Miguel ou Yussef Miguel, pai do autor. Essa trajetória oferece um vislumbre dos desafios de forjar uma nova vida num ambiente desconhecido. Questiona-se deveria ter imigrado? No livro trata das maneiras pelas quais a cultura libanesa se transforma na realidade brasileira.

Nur  significa luz em português, a primeira  palavra aprendida por Yussef, a luz que ele procurara lançar para compreender toda a sua trajetória de vida, a luz que se enfraquece quando “o pai agoniza”, a luz que   o narrador tenta manter acesa enquanto a mão paterna vai se soltando da mão do filho na derradeira despedida: “ A mão do pai solta-se da mão do filho, tomba mole.”

A cena inicial do romance retrata a chegada da família ao Cais do Porto do RJ na Praça Mauá, 1927. A travessia do oceano durou pouco mais de um mês desde Beirute. Yussef Miguel começava a gravar na memória as últimas imagem de seu país, o Líbano, o Mar Mediterrâneo atuando, assim,  como fronteira para a família, o fim e o início.  A família Miguel era uma das inúmeras famílias que no Brasil aportavam durante a segunda onda migratória, entre as duas guerras mundiais. Destinos como Austrália e EUA tornaram-se de difícil acesso para os imigrantes, por conta das cotas migratórias. Passam eles a imigrar para a América Latina. Entre 1920 e 1926, a instalação do Mandato Francês no Oriente Médio, causou grande instabilidade na r egião, resultando na retomada do fluxo migratório que havia perdido força com a Primeira Guerra. O destino para as Américas era invariavelmente reorientado, fosse pela imposição de cotas migratórios por países como os EUA, fosse pelo atraso na emissão de vistos nos portos europeus para os árabes, na medida em que não havia representação diplomática brasileira no Líbano e na Síria. 

A família Miguel pretendia partir para os EUA, mas cotas para os orientais se esgotaram. Decidiram então, entrar no país pelo México: “(…)Optam pelos EUA.  Embora exista outro empecilho: a cota para orientais está esgotada. Terão que se aventurar, entrar, como tantos, pelo México, de contrabando”. Porém, os planos mudariam: Yussef apresenta infecção ocular que, mesmo tratada não cede, e o visto para o México é negado definitivamente:

“Um dia Yussef chega em casa transtornado. Desaba numa banqueta, esconde o rosto entre as mãos. Tamina, sua mulher, interrompe o que fazia, aproxima-se, preocupada. E ouve o que lhe é transmitido aos trancos: negado o visto para o México.” Decidem-se pela América do Sul como destino. Havia os irmãos de Yussef no Brasil e o pai dela na Argentina. Após mais de um mês de viagem,  como outros imigrantes, desembarcavam no RJ e depois de tentativas frustradas de  lá se estabelecerem,  seguem para o sul do Brasil, para SC; as cidades de São Pedro de Alcântara,  Biguaçu e  Florianópolis receberiam a família Miguel. 

Grandes mudanças ocorrem na vida do patriarca Yussef/José Miguel, que navega entre as expectativas de sua cultura de origem e as demandas da sociedade brasileira. Vive jornada marcada por sucessos e fracassos, momentos de conflito e de integração, todos eles contribuindo para compreensão maior da experiência imigrante. Distante das obras produzidas por aqueles que não pertenciam à cultura oriental,  a história dos árabes no Brasil é resgatada em  Nur na escuridão.”

No passado desta família, sem espaço para sobreviver em sua terra natal e com esperança de enriquecer na “América”, parte para uma “nova pátria”. Imigrantes árabes, eram aceitos no Brasil, dando o primeiro passo integrando-se na sociedade local pela via econômica, mascateando pelo interior. Recorrendo à ideia de pioneirismo presente na figura histórica do bandeirante paulista, a participação cultural e econômica dos sírio-libaneses das grandes levas migratórias foi legitimada pela sociedade brasileira que ao absorvê-los culturalmente, concedia ao mascate árabe título de “bandeirante oriental”, forjando-lhes cidadania concebida pela sua contribuição econômica:

O segundo passo para a legitimação do imigrante no cenário nacional seria sua absorção e assimilação da cultura local. A coexistência cultural entre brancos, negros e índios traçou um perfil particular na cultura brasileira, formando-se aqui uma estrutura culturalmente plural. Com isso, a aculturação ou assimilação dos imigrantes transcorria aparentemente pacífica e naturalmente, porém, nada impedia que um traço étnico da identidade dos imigrantes persistisse, por mais que estivessem integrados na “nova pátria.” Como aconteceu com a maior parte dos imigrantes que vieram para o Brasil, a absorção e assimilação da cultura brasileira fora quase integral. No caso do patriarca da família Miguel, seu nome foi sendo alterna do conforme assimilava os hábitos da nova terra.

“Ao longo do romance, várias alusões são feitas à maneira pela qual Yussef é chamado, traço identitário revelador da posição que seu interlocutor adota na relação. No capítulo inicial, quando Yussef fala a outros libaneses na igreja ortodoxa do RJ, o narrador sublinha que seu nome pode variar: "E tu Yussef (ou José, dependendo do perguntador […]) » (p. 21), « (na igreja o pai volta a ser Yussef) » (p. 23). É em São Pedro de Alcântara que começa a deformação de seu nome para o equivalente em língua portuguesa (Yussef/Josef – p. 98). Ao longo do tempo, os epítetos se multiplicam: seu José, seu Zé, seu Zé Miguel, seu Miguel, seu Zé Gringo, seu Zé Turco, Zé Turco. At&eac ute; Tamina acaba por interpelá-lo de diferentes maneiras: Yussef, José, e por um nome híbrido, Yusé (p. 181). No entanto, quando ela está preocupada, é em sua língua materna que ela o chama: "(às vezes, entre eles, na intimidade, quando está preocupada, é Yussef)" (p. 123), "a mãe, mais prática, preocupada, costuma repetir: José, precisas cobrar (…) um horror as dificuldades, a fome, a miséria, onde vamos parar, Yussef?" (p. 125).

A riqueza de Nur na escuridão arrasta o leitor para uma reflexão sobre as relações entre imigrantes e a “nova pátria”, lança um olhar crítico sobre o passado daqueles que acreditaram na prosperidade de um país totalmente adverso ao deles. Recorrendo a um texto literário, como a narrativa de Salim Miguel, é possível reviver e compreender a história não só dos imigrantes árabes no Brasil, mas de todos aqueles que abandonaram seu país em busca de “nur” (luz) para sua sobrevivência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para compreender a inserção do imigrante árabe no Brasil e como se configura sua representação na literatura no  âmbito  dos  Estudos da Imigração no Brasil e tendo como motivação o centenário do escritor Salim Miguel, atentemos como procedeu a inserção do imigrante no Brasil. Nur da Escuridão insere-se  numa  linha  para reflexão acerca da produção literária dos “filhos da Diáspora” iniciada pela segunda geração de descendentes dos primeiros imigrantes bem como, em momento mais recente, compreender  os desafios vividos pelas ondas de deslocados pelo mundo.

 Na medida em que os filhos desta diáspora conquistavam espaços nos campos político, econômico e cultural do país, no  âmbito  da  História e da Crítica Literária,  atentemos  para  o romance em questão para que possamos compreender os encontros do Brasil com o Oriente Médio ao serem dadas múltiplas vozes para as narrativas que compõem o cenário literário nacional e o sentimento que afeta os imigrantes que voluntária ou involuntariamente deslocam-se para o exílio. Nesta análise, então, não poderíamos passar distante da reflexão de Edward Said sobre a experiência do exílio, vista por ele como complexa e multifacetada, como nos é apresentada a partir do personagem Yussef/José M iguel. As narrativas dos “filhos da diáspora” representadas aqui pelo romance de Salim Miguel desafiam as narrativas dominantes que tendem a reduzir o imigrante a figura sem voz, sem poder, ou ainda e talvez pior, estereotipada.

Em última análise, “ Nur na Escuridão” mergulha nas águas turbulentas da travessia da diáspora as questões identitárias, apresentando visão emocionante sobre a experiência humana. Salim Miguel se consolida como um dos principais escritores da literatura brasileira contemporânea, oferecendo narrativa rica e envolvente despertando reflexão profunda sobre as complexidades da vida e da identidade. Assim, em tempos em que os deslocamentos parecem ser o único meio para a preservação do humano  e que paradoxalmente aumentam os muros para impedi-los, “Nur, na Escuridão”, é convite para refletir sobre as complexidades do processo de adaptação, e como isso impacta a identidade e experiência do imigrante seja ela em qualquer tempo.

 

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