Uma senhora de 59 anos que viu seu filho pequeno quase morrer engasgado; um jovem marceneiro que, aos 22 anos, já abriu sua própria empresa, mas pretende mudar de profissão; e a funcionária de um cartório que, em um treinamento interno, descobriu a paixão por ajudar o próximo. Apesar de histórias de vida diferentes, os três possuem algo em comum, assim como com outras 51 pessoas: na ânsia de contribuir com a sociedade de forma positiva, estão prestes a se tornarem bombeiros comunitários.
Todos já passaram pelos Cursos Básico e Avançado de Atendimento a Emergências, bem como pelo devido estágio obrigatório nos quartéis de Içara, Morro da Fumaça ou Urussanga. E depois do fim de semana, a última etapa a ser vencida antes da tão sonhada formatura foi concretizada: das 21h da última sexta-feira até às 2h da manhã de ontem, os 54 alunos das três turmas enfrentaram um verdadeiro treinamento final, com imersão no meio de uma mata, na área interna do 28º Grupo de Artilharia de Campanha (GAC), tendo que lidar com o salvamento de supostas vítimas mediante escassez de recursos e situações adversas.
Na possibilidade do luto, o estalar para a mudança
Em meio aos 54 futuros bombeiros comunitários, durante o treinamento final, não havia como deixar de perceber a presença da auxiliar odontológica Jane Stano Bosquette. Aos 59 anos e motivada por uma força imensurável – do amor de mãe – seguia o mesmo ritmo dos colegas com metade de sua idade, ou em alguns casos, com até menos que isso.
Sua mochila possuía os mesmos dez quilos de peso dos demais participantes e, questionada sobre as dificuldades do treinamento, garante não se arrepender de nada. “Vim com toda a garra que tenho e não vou desistir”, acrescenta.
É que sua história possui um diferencial, que lhe deu forças para percorrer toda a preparação, na busca por se tornar uma bombeira comunitária. Há seis anos, ainda casada, adotou um filho. Quando a criança possuía um ano, um dos piores momentos de sua vida aconteceu: ao comer um sonho, o pequeno se engasgou e quase morreu. Foi somente graças ao marido na época, que tinha conhecimento de primeiros socorros e conseguiu fazer um primeiro atendimento, que o incidente não terminou em um final trágico.
O tempo passou e Jane se divorciou, passando a morar apenas com o filho em Balneário Rincão. “Fiquei pensando, se acontecesse alguma coisa novamente, eu estando sozinha, não saberia o que fazer. Da outra vez eu já estava vendo meu filho morto, mas meu ex-marido teve toda a calma necessária, porque já tinha experiência por ter aprendido o que precisava ser feito”, conta.
“Foi então que decidi aprender também e comecei a me preparar, primeiro pelo curso básico e, logo em seguida, pelo avançado. Posso garantir que não me arrependi de nada e que vou levar muita experiência para minha vida, coisas que eu não sabia e que, tendo conhecimento, vou poder utilizar para ajudar os outros. Vou completar 60 anos e logo me aposento, ai poderei me dedicar ainda mais para o bem do próximo, pois quero ajudar todos no que eu puder”, ressalta.
“E para quem tem vontade de também fazer o curso, só posso dizer para seguir esse desejo, que é tudo de bom”, completa.
Da marcenaria para os quartéis
“Eu via os caminhões e ambulâncias passando e o desejo de ajudar o próximo despertou dentro de mim” – Julivan de Matos Serafim, marceneiro
Com 22 anos, Julivan de Matos Serafim já possui uma empresa de marcenaria há três. Decidiu empreender ainda jovem e, desde então, mesmo passando por autos e baixos, tem tocado seu negócio. No entanto, sempre teve apreço pelo papel desempenhado pelo Corpo de Bombeiros na sociedade, uma admiração que se tornou vontade de fazer parte.
“Foi um sonho desde criança, eu via os caminhões e ambulâncias passando e o desejo de ajudar o próximo despertou dentro de mim. Antes eu estava impossibilitado, por não ter um preparo, um treinamento, então resolvi participar dos cursos básico e avançado, para me tornar realmente um bombeiro comunitário”, afirma.
Morador do Bairro Vila Rica, em Criciúma, o marceneiro frequentou as aulas no quartel de Morro da Fumaça e garante que, depois de formado, vai permanecer frequentando a unidade e contribuindo com as ocorrências. “É algo que eu sempre brinco, que se deixar, eu moro no quartel, porque me faz bem, chego lá e fico melhor comigo mesmo, pensando sempre que vou conseguir ajudar as outras pessoas e que cada ocorrência será uma experiência nova”, aponta.
Para Julivan, o desafio não termina com a conclusão do Curso Avançado de Atendimento a Emergências. O jovem já está se preparando para tentar a aprovação no concurso público e o ingresso definitivo no Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina.
“E tendo aprendido tudo que aprendi, se der certo de chegar ao concurso, vou estar mais bem preparado para oferecer o melhor profissional que posso ser”, garante.
O primeiro lugar para a melhor, na teoria e na prática
“Você se doa, ajuda a outra pessoa, sem esperar nada em troca” – Ariele Acordi Vargas Lima, funcionária de cartório
Entre as três turmas do Curso de Avançado de Atendimento a Emergências, envolvendo alunos de Içara, Balneário Rincão, Morro da Fumaça, Urussanga e Cocal do Sul, foram 54 alunos. Destes, o melhor desempenho – analisando-se tanto a parte teórica, quanto a prática –, foi de Arieli Acordi Vargas Lima, de 23 anos.
Funcionária de um cartório, a vontade de se tornar uma bombeira comunitária surgiu depois da participação em um treinamento de combate a incêndios e primeiros socorros, justamente no local onde trabalha atualmente.
“Fui descobrir que existia o curso para bombeiro comunitário, me inscrevi, participei do básico no quartel de Içara, achei muito mais interessante do que já imaginava que era e decidi partir para o avançado. Com a formatura, pretendo continuar ajudando a comunidade, porque é muito gratificante, não dá nem para descrever algo que você não obtém de outra forma, não tem dinheiro no mundo que pague o olhar de outra pessoa, sabendo que você está podendo ajudar ela, que não vai poder lhe retribuir. Você se doa, ajuda a outra pessoa, sem esperar nada em troca”, avalia.
Para o futuro, em paralelo com as funções de bombeira comunitária, a funcionária de cartório também pretende passar no concurso público para se tornar uma bombeira militar. “Descobri que gosto mesmo disso e acredito que ser bombeiro é escolher uma profissão muito digna e importante, já que na maioria das vezes a gente esquece os próprios problemas para ajudar a resolver os problemas das outras pessoas”, reforça.
Desafiando limites com poucos recursos no meio do mato
Bem avaliada no ano passado, a experiência do treinamento com os alunos do Curso Avançado de Atendimento a Emergências foi repetida com as turmas que estão finalizando a preparação neste início de abril.
Para o comandante da 2ª Companhia do 4º Batalhão de Bombeiros Militares, capitão Renan Fernandes, o principal objetivo da ação foi promover a padronização das atividades, para que o serviço desenvolvido no quartel de Içara seja o mesmo de Morro da Fumaça e Urussanga. “Além da integração entre as diversas equipes, porque em casos de ocorrências de grande gravidade na região, esses alunos vão ter que trabalhar juntos”, constata.
Em relação à atividade do fim de semana, o foco dos ensinamentos foi o trabalho, no meio de uma área de mata, com os chamados meios de fortuna. “Ou seja, meios que você tem no dia a dia, que pode improvisar em um atendimento a emergência, como um galho de árvore, uma corda, o uso de um chinelo para fazer um colar cervical, os meios adaptados para que o bombeiro comunitário consiga fazer o socorro da vítima”, explica.
Nos diversos testes, as reações dos alunos em momentos de crise também foram avaliadas, uma vez que todos estavam com privação de sono e alimentação, com frio, carregando mochilas com dez quilos de peso e desempenhando tarefas desgastantes. “Ficamos percebendo como foram essas reações em situações bastante desgastantes, porque em ocorrências mais complexas, a gente pode passar de 12 horas até uma semana inteira em cima do fato”, esclarece o comandante.
Segundo o subcomandante da 2ª Companhia, capitão Arthur Eugênio da Silveira Júnior, o planejamento para o treinamento final foi iniciado em dezembro de 2018 e preparado para se tornar uma experiência de vida, em que cada aluno pudesse conhecer até onde podem ir seus limites corporais e psicológicos. “É uma experiência interessante, experimentar como é ficar em um ambiente desfavorável e ter que se adaptar à situação. Tenho certeza que eles aprenderam coisas que vão levar para toda a vida”, enaltece.
Na noite de sexta-feira, às 21h, a atividade começou com uma conferência de materiais, seguida por uma marcha de 12 quilômetros, com cada aluno carregando mochilas com peso mínimo de dez quilos. Ao chegarem ao local do treinamento, todos montaram o acampamento e, posteriormente, receberam instruções e colocaram em prática, com diversas atividades durante horas e horas seguidas, tudo que aprenderam na teoria.
“Assim, já conhecemos os limites do aluno e mostramos para eles, também, o que podem esperar lá na frente, em uma ocorrência real. A gente passa a saber quem vai ter capacidade de trabalhar por 12h ou 24 horas ininterruptas, muitas vezes sem conseguir se alimentar direito ou fazer necessidades, em detrimento do bem maior que é o salvamento da vítima, o salvamento de uma vida”, destaca Fernandes.
Reforço para o efetivo
Além de contribuírem nas respectivas comunidades que fazem parte, os bombeiros comunitários, que se formarão já na próximas semanas, representam um importante reforço para o efetivo do Corpo de Bombeiros.
“Trata-se de um sangue novo que chega, são 54 homens e mulheres que vão oferecer seu apoio para a nossa região, de uma forma que poderemos continuar prestando um atendimento de excelência para a comunidade”, complementa o comandante.
Grupo eclético
Outro ponto de destaque diz respeito às diferenças encontradas entre os 54 futuros bombeiros comunitários. Conforme o capitão Fernandes, são homens mulheres com diversas idades e biotipos, desde profissionais da saúde até empresários, formando uma turma bastante eclética. “E isso traz um enriquecimento muito grande para a corporação, uma vez que são várias as atividades que o Corpo de Bombeiros desenvolve e essa experiência, como do ambiente de trabalho, contribui muito para as nossas ações”, avalia.
De acordo com o comandante, independente das diferenças, todos vão poder concluir o curso. “A gente fica muito feliz em saber que, daqui a alguns dias, teremos mais 54 cidadãos que poderão fazer frente a uma emergência real. Torcemos para que muitos bombeiros comunitários se tornem militares no futuro, como eu, que tive a felicidade de passar em um concurso, me formar e, até hoje, trabalhar aqui”, finaliza.