"As pessoas podem mudar tudo, de cara, de casa, de família, de namorada, religião, de Deus, mas tem uma coisa que não se pode mudar. Não se pode mudar de paixão". A frase refere-se ao amor de um torcedor ao Racing Club de Avellaneda, extraída do filme argentino ganhador de melhor Oscar estrangeiro em 2010, "O segredo dos teus olhos". O filósofo brasileiro Clóvis de Barros Filho, em um ensaio sobre as paixões, caracteriza a dificuldade racional em definí-la, mas especula-a como algo que dá ao ser humano a potência de agir.
No debate futebolísitico, a paixão e a racionalidade muitas vezes são colocadas em espectros opostos. Cabe aos gestores ponderarem os fatores e tomar as decisões do futuro dos clubes. A paixão nascida nos tempos do antigo Comerciário foi um dos motivos que fez Waldeci Rampinelli retornar ao Criciúma, em sua quarta passagem pelo futebol do clube.
Tem duas coisas que tu nunca mudas: o amor pelo pai e a mãe e pelo time de futebol. A paixão pelo antigo Comerciário e Criciúma continua".
O dirigente, no entanto, mantém a racionalidade ao alcance dos olhos para repetir a trajetória de acessos - foram dois: em 2002 e 2012. Essa última, inclusive, fez com que o cabelo do então diretor fosse raspado no gramado do Heribert Hülse.
"Primeiro sempre a razão, porque pela paixão e emoção, a probabilidade de errar é muito grande", disse o dirigente à reportagem do Portal 4oito, em entrevista de quase 30 minutos no Centro de Treinamento Antenor Angeloni, na última segunda-feira.
Rampinelli falou sobre a reestruturação do Tigre fora do campo, a montagem do elenco e a relação com o técnico Hemerson Maria. Confira.
- Foram oito anos longe do Tigre, o que mudou daquele tempo no clube?
"Hoje em dia muda muito, principalmente no futebol. Muda-se de semana para semana, de mês para mês. O futebol e as pessoas evoluíram. O Criciúma veio desse sistema 'capitalista' e estamos indo para o sistema 'socialista'. É um mudança muito forte e que a gente precisa de todos para que possamos fazer um trabalho coletivo".
- O que significa esse regime 'socialista'?
"Até então o Criciúma era gerido por uma empresa, que era a GA. Partimos agora para uma administração social, um clube dirigido por uma diretoria eleita"
- O clube de certa forma retorna ao torcedor?
"É mais ou menos assim. O clube que antes era de alguém, hoje é de todos. É uma sociedade, onde todos têm a participação, dos ônus e dos bônus".
- Quais os desafios que tu vais encarar nesta temporada 2021?
"Primeiro a organização. Partimos de uma diretoria que nem está composta ainda, precisamos eleger um vice-administrativo. Temos que parabenizar o nosso presidente pela coragem e volúpia. Temos que participar e colaborar, fui convidado como diretor de forma gratuita para tentar voltar aquele futebol mais participativo do torcedor. Primeiro desafio é esse, fazer voltar o torcedor.
Segundo lugar é montar uma estrutura, o futebol começou só com a nossa pessoa. Ver as pessoas que estavam e podem ficar, as que têm que ser substituídas, outras que podem chegar. É a reformulação. O staff está praticamente pronto, mas sempre tem alguma surpresa. O mais difícil agora é buscar os atletas"
- Essa é uma gestão de transição, mas tem 2021 e talvez 2022 com o novo presidente. Tu pretendes acompanhá-lo?
"Vamos com calma. Quem muito abraça, pouco aperta. Vamos fazer este ano, com muito trabalho, projetando uma estrutura nova e diferente. Um CT mais adequado à nossa realidade, mais arrumado e dando condições de treinamento e hospedagem a todos os atletas que vierem para nos ajudar. No fim do ano, quem julga se fica ou não é o nosso trabalho e a eleição em dezembro".
- Tu já ficaste careca pelo Tigre e deixou de lado negócios particulares pelo Tigre. O que te motiva a encarar esse novo desafio?
"Quando tu vês um presidente disposto a assumir o Criciúma dentro da atual estrutura, tu não podes deixá-lo sozinho. Tu tens que participar. Foi esse chamamento do presidente que fez com que nós voltássemos. Claro que no fundo tem o gosto pelo futebol, eu sempre fui apaixonado pelo futebol. Eu assisto jogos pela televisão quase todos os dias, principalmente Série B e C. Futebol italiano, europeu, não me diz nada, temos que ver o que temos aqui. Tem duas coisas que tu nunca mudas: o amor pelo pai e a mãe e o time de futebol. A paixão pelo antigo Comerciário e Criciúma continua".
- Há quem diga que não se muda de paixão ao longo da vida. Há quem diga que a paixão é aquilo que te dá energia para agir. O futebol e o Tigre são tuas paixões?
"Principalmente o torcedor. A gente é muito cobrado, por onde anda com a nossa empresa na região e Brasil, somos às vezes questionado tanto pelo produto que vendemos quanto pelo Criciúma Esporte Clube. São os assuntos colocados à frente em qualquer lugar que tu vais, primeiro o arroz e depois o futebol. Essas cobranças fazem com que a gente dê um pouquinho mais para o Criciúma. Se der tudo certo e fizermos um grande Catarinense e acesso, não fizemos mais do que a obrigação. Se os objetivos não forem alcançados, a cobrança virá. Eu prefiro ir à luta do que ficar no anonimato".
- Fala-se muito em modernidade de gestão. Como tu gerencia os fatores paixão e razão?
"Vamos trazer atletas em nível de Série C, mas com qualidade e potencial de ir para a B ou A. Quem não as tem, vamos fazer com que as tenham. Quem disputa a Série C, vem com objetivo de progredir e subir. É esse perfil que nos interessa. Quem chegar com o objetivo de 'eu quero mais um contrato, a Série C está boa', pe bom que nem entre no CT. A comissão técnica já foi escolhida nesse sentido.
Estamos demorando a contratar. Precisamos analisar esses atletas, conversar. Outro fator é que 70% a 80% dos jogadores que virão para cá, já estão em atividade. Vai demorar um pouquinho, não é agora. É o trabalho de olhar no olho, conversar e dizer para o que vieram e onde queremos chegar"
- Tua gestão é de paixão ou de razão?
"As duas juntas. Primeiro sempre a razão, porque pela paixão e emoção, a probabilidade de errar é muito grande".
- Tu falaste ano passado em agregar forças pelo clube, ter pelo menos 70% dos conselheiros na mesma direção. Isso aconteceu?
"Eu penso que sim. Agora cabe aos conselheiros mostrarem a que vieram. Temos uma diretoria eleita e composta. Aos empresários e pessoas que gostam do Criciúma, cabe dar o seu apoio. Não precisa ser recurso em dinheiro, mas ter a participação. Será que não temos 300 empresas na região que possam comprar do Criciúma R$ 2 mil de, por exemplo, camarote, ingressos, cadeiras ou placa? Esses números não são ilusórios e o marketing do clube está envolvido para ir atrás dessa situação. O Criciúma é uma bandeira de divulgação da cidade.".
- Qual o investimento no futebol para a temporada?
"Todo o nosso orçamento foi divulgado pelo clube. Quem quiser saber quais os valores em futebol e administração, é só entrar no site e está todo o planejamento para 2021"
- Essa ação já faz parte da ideia de ter maior transparência na gestão?
"Sempre. Precisamos conversar e divulgar. Essa entrevista é muito importante, o Criciúma tem que subir uma escada: nossos funcionários vão subi-la e a direção e imprensa dão o suporte para que a escada tenha força e não caia, e todos cheguem ao seu ápice. Os torcedores precisam saber da verdade".
- Criciúma tem comissão técnica, gerente e diretor de futebol. Qual o papel do diretor Rampinelli na montagem do elenco?
"A função é coordenar isso tudo. São várias cabeças. Bate-se o martelo das decisões que estão sendo estudadas. Não quer dizer que a minha voz tenha maior peso. O futebol é muito dinâmico, não para, é sábado e domingo, não tem horário. Cabe a mim coordenar, mas a responsabilidade é de todos".
- Tu tens o costume de indicar jogadores ou deixas a cargo do técnico?
"De vez em quando eu tenho que dar uma apitada. Adquirimos essa semana um sistema de análise técnica de jogadores, que o Criciúma não tinha. Faz-se uma análise de todos os jogadores e às vezes eu coloco um nome para eles darem uma olhadinha. Quem vê Série C e B, tem noção de jogadores, trocam-se ideias com amigos que estão longe".
- Hemerson Maria falou em time com intensidade e de jogadores experientes. Onde o Criciúma procura os jogadores e quais atrativos oferece para trazê-los?
"Para jogar Série C, não se pode ter só jogadores jovens. A comissão técnica avalia que tenhamos de quatro a seis jogadores mais maduros, com passagens nas séries C, B e A, na faixa dos 30 e 32 anos, para que na hora do empate, eles possam fazer a diferença junto com a jovialidade. É esse o esboço de equipe que projetamos já para o Catarinense".
- Essa jovialidade vem da base do Criciúma?
"Os que estão aqui vamos aproveitar. Também vamos trazer jovens de outras equipes para compor esse elenco. É um grupo de no máximo 26 jogadores, deixar a casa enxuta e, havendo necessidade, temos a Série C depois para fazer alguns arranjos".
- E a possibilidade de aproveitamento de atletas da GA?
"Nós conversamos com o Jaime e seu representante, o que era pra ser conversado já foi. Existe agora uma conversa com o Eduardo, que é um jogador da região, criado aqui. Ele tem muito interesse em ficar. Faltam detalhes em termos de contrato. Se houver a disposição de alguém ceder, principalmente na parte financeira, o Eduardo nos interessa pelo potencial e a vontade do que ele quer demonstrar pelo Criciúma"
- Como recuperar a confiança da arquibancada?
"Só ganhar. Eu sempre disse na vida, o melhor marketing do futebol é você ganhar. Se ganhar, tu vendes, compra, fica tudo mais fácil. Nosso trabalho é fazer com que a equipe comece a competição aguerrida, com força, determinação e vontade. Com esses adjetivos, a possibilidade do resultado ser positivo é muito grande".
- O que mudou em ti nos últimos oito anos?
"Mais maduro, esperto. Quieto, cauteloso. Minha filosofia de trabalho continua a mesma: é um estilo brincalhão e de cobrança. Quem está aqui tem que ser parceiro. Eles confiam em mim e eu neles. Tendo isso, só tem um caminho, que é o sucesso".
- São sete anos sem título catarinense. Por quê essa dificuldade?
"O Criciúma vem de uma administração particular. Não sei qual era o problema, como é que se pensava gestão, não sei o que aconteceu. O nosso foguete não tem retrovisor, como diz o presidente. Temos que olhar só para a frente".
- Fala-se das dificuldades dos catarinenses em se manter na elite do futebol brasileiro. Qual o potencial do Criciúma?
"Temos o exemplo da Chapecoense que subiu em 2013 e ficou alguns anos, caiu e está voltando. Temos em Santa Catarina times com estrutura para se manter em Série A. O próprio Criciúma fez campanha fantástica em 2013. Pequenos detalhes internos fizeram com que não se permanecesse. Claro que é difícil, mas Santa Catarina tem estrutura para ter no mínimo duas equipes na Série A".
- E uma pode ser o Criciúma?
"É a luta, mas primeiro tem que ir para a B. O Brusque, até dois anos atrás, era um ilustre desconhecido no Brasil. Hoje, é conhecido por ser campeão da Série D e se não tivesse vacilado ia decidir a Série C".
- Como tu avalia as chances do Criciúma no Catarinense e na Série C?
"Nós temos uma diretoria fantástica. Um diretor de patrimônio dedicado às nossas estruturas, o seu Vilmar. No financeiro, o seu Valcir está direto acompanhando os números e o presidente está no CT diariamente. Se depender de trabalho, honestidade e transparência do que estamos fazendo, nós vamos ter muitos objetivos alcançados.
O primeiro passo no Catarinense é ficar entre os oito, depois é mata-mata. O brasileiro, a primeira meta é classificar para a segunda fase e o objetivo principal é voltar à Série B".
- O Catarinense é um preparatório ou vestibular para a Série C?
"Vai ser os dois. É durante a preparação que tu consegue as tuas metas. Se chegarmos entre os oito, vamos ao mata-mata, é um passo por vez. Quem não quer um título catarinense? Nosso objetivo maior é a Série C, mas se tu arrancas com título ou grande campanha, tu já vais mais 'faceiro', como diz o gaúcho, para o baile seguinte".
- O time será o mesmo no Catarinense e Série C?
"Tudo depende de resultados. Se os resultados não vierem, há a reavaliação. No futebol é assim".
- O Tigre anunciou um técnico de trabalhos sólidos no futebol brasileiro. Como foi a negociação?
"Tínhamos que trazer alguém cascudo que conhecesse a nossa história, de Santa Catarina e da Série C. Ele e a comissão técnica foram sabatinados por nós e nós por eles. Quando o trouxemos, ele ficou admirado. Foram cinco horas de conversa, fizemos uma avaliação, eles voltaram a Florianópolis e os gabaritos deram certo. Foi um namoro à primeira vista e que está dando certo".
- Como se dá o respaldo ao técnico?
"Olho no olho, dizendo que o que conversamos no início será lei até o final".
Confira a entrevista completa: