Profissões antes vistas como masculinas estão ganhando cada vez mais a presença de mulheres. A representação feminina na segurança pública, ainda que seja um tanto quanto recente, tem crescido a cada ano. Contudo, a participação delas em um dos setores fundamentais da cidadania pode ser muito maior.
Nesta reportagem especial elaborada pelo Portal 4oito, conheça as histórias de duas mulheres que dedicam a vida em diferentes pontas da segurança pública.
“Ali, eu me encontrei”
Isabel Cristina Feijó, de 49 anos, é policial civil e atua como investigadora na Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI) de Criciúma. Entre suas principais demandas de trabalho está a violência doméstica e crimes sexuais cujas principais vítimas são mulheres de todas as idades.
Porém, a sua trajetória começou no jornalismo, atuando em veículos de comunicação da região. E, com pouco mais de uma década de experiência como jornalista, Cris decidiu mudar de carreira em busca de uma rotina mais estável, principalmente, em termos de horário. Para isso, se graduou em Direito e começou a atuar como advogada.
“Eu sempre gostei muito de investigação. Desde quando era jornalista, gostava muito das pautas de jornalismo investigativo, fiz alguns trabalhos nessa área. E quando eu já estava advogando, já com filhos e vida mais estabilizada, me chamou a atenção uma matéria sobre um concurso da Polícia Civil. Assim, acendeu algo dentro de mim”, relembra.
O ano era 2014. Estudando duas horas por dia para o exame, a profissional conseguiu ficar dentro das vagas remanescentes. Porém, somente três anos depois da primeira etapa do concurso, em 2017, saiu a lista com o nome de Cris. Mais quatro etapas vieram a seguir. “São etapas bem difíceis e eu não estava preparada. Tem prova física, teste psicológico profundo, por causa da questão do armamento, e toxicológico”, explica.
Em Santa Catarina, aproximadamente 35% do efetivo da Polícia Civil é feminino. Os concursos públicos são por livre concorrência, isto é, as vagas podem ser preenchidas por homens e mulheres.
Eu entendia como se fosse a minha última chance, por conta da idade, da estabilidade e de já não ter mais aquele foco de estudar tanto. Fiz as outras etapas, me dediquei, passei e deu certo. Em junho de 2017, tomei posse.
Durante os cinco meses seguintes, Cris se tornou aluna da academia de polícia em Florianópolis. Neste momento, o apoio da família foi fundamental para encarar o novo desafio.
“Eu me encontrei. Estava ali naquele ambiente e pensava ‘meu Deus, é isso que quero fazer’. Larguei uma profissão que eu era bem dedicada, já estava bem financeiramente e participava da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]. Abri mão de muitas coisas também”, comenta a profissional.
“Foi o momento mais difícil”
Em novembro do mesmo ano, Cris se tornou oficialmente policial. O desafio estava só começando. Pelos dez meses seguintes, a investigadora teve que permanecer longe da família, no outro lado do estado.
“Foi o momento mais difícil que eu passei dentro da polícia porque eu fui lotada no meio-oeste. E eu não tinha condições de levar a minha família por conta de toda a estrutura que nós tínhamos aqui. Fiquei em Campos Novos por dez meses longe da família, trabalhando. Sempre com a certeza de que era temporário”, conta.
Após meses de angústia, a policial recebeu a oportunidade de retornar a Criciúma, na vaga em que está hoje. A rotina era puxada - plantão de 24 horas seguidas e, depois, folga de 72 horas.
“Até que houve toda uma reestruturação aqui dentro. Então foi formada a equipe de investigação. Foi aí que eu consegui vir para onde eu sempre quis. Desde quando fiz o concurso, a minha vontade era atuar com investigação”, ressalta.
Na Polícia Civil, Cris também teve a chance de expandir o conhecimento. Fez pós-graduação em Investigação Criminal e Segurança Pública, além de um curso voltado para casos de feminicídio, um dos focos da delegacia em que atua. “Hoje, eu trabalho muito com demandas de violência doméstica e, infelizmente, de crimes sexuais envolvendo mulheres de todas as idades, de crianças pequenas até idosas”, destaca.
Trabalhar diretamente com mulheres não era algo que despertou, inicialmente, o interesse da investigadora. Lá atrás, em 2017, sua vontade era trabalhar na Divisão de Investigação Criminal, a DIC de Criciúma. Desejo este que foi realizado quando era estagiária na época da academia de polícia.
Foi no dia a dia, na busca de conhecer, fui me envolvendo cada vez mais e me apaixonando por este trabalho. Eu quis aprender. Não foi fácil.
“Muitas vezes, a mulher faz 20 BOs e depois quer tirar”
O trabalho de um investigador consiste em reunir elementos, fotos, endereços e quaisquer outras informações que possam ajudar a desvendar um crime. Cris relembra o caso de uma vítima de violência doméstica. A denúncia chegou por meio de um familiar do Rio Grande do Sul e que, segundo o parente, a mulher vivia em cárcere.
“Mesmo sendo em uma cidade próxima, a delegada, à época, achou por bem nós intervimos. Para ter acesso a esta mulher, tivemos que fingir que éramos da igreja, compramos bíblias e usamos um carro descaracterizado. Como investigador, você tem personagens que muitas vezes temos que nos caracterizar para chegar na vítima ou ter informações sobre o suspeito”, afirma.
O marido, e agressor, já havia sido condenado por um feminicídio e cumprido uma pena de 12 anos no estado vizinho. Naquele momento, ele estava em liberdade condicional e já tinha dois filhos com a vítima da denúncia em questão.
“Conseguimos chegar até a vítima, que confirmou tudo o que estava acontecendo. Marcamos, então, para no dia seguinte buscar ela com a ajuda do parente. Foi toda uma movimentação para conseguirmos tirar ela da cidade. Fizemos toda a parte burocrática enquanto ela e os filhos também estavam seguros no RS. Cerca de oito, dez dias depois, ela aparece aqui na delegacia para retirar a queixa. Aquilo foi um balde de água fria”, expõe.
A história contada por Cris exemplifica a rotina de trabalho na Delegacia da Mulher. Muitas vítimas se encorajam a denunciar seus agressores que são, em grande parte dos casos, companheiros ou ex-parceiros. Porém, pouco tempo depois, algumas delas decidem retirar a queixa. Essa dura realidade é explicada pelo ciclo da violência.
“Esse conhecimento me trouxe a calmaria para conseguir trabalhar. Aquilo que me incomodava no início, parou. Porque fazer o que for preciso para tirar aquela mulher do ciclo da violência é o que me determinei a fazer”, enfatiza a investigadora.
“Sendo mulher, eu sei que, às vezes, o caminho é um pouco mais complicado”
Enquanto policiais, as mulheres que trabalham com segurança recebem o poder de autoridade pelo Estado, algo que nem todos parecem enxergar. “Até pela questão física da mulher ser menor e mais frágil, talvez, os homens, as pessoas tenham maior dificuldade de nos ver como autoridade”, relata.
Os assédios disfarçados de ‘brincadeiras’ também acontecem. “Por exemplo: O que eu faço pra você me prender? O que eu tenho que fazer para ti me jogar na cela? Tem sempre essas piadas de que ser preso por uma mulher vai ser melhor. A gente tem que estar preparada para ouvir esse tipo de piada”, revela.
Quando eu venho para a minha rotina de trabalho, começo a receber minhas demandas, as diligências que eu tenho que atuar, e vejo crimes que as mulheres sofrem no dia a dia, parece tão difícil. Parece que a gente dá um passo para frente quando estamos discutindo e cinco para trás quando os fatos caem nas nossas mãos.
Trabalhar em uma delegacia torna mais difícil acreditar que houve, de fato, alguma evolução. Diante desse cenário, Cris está em grupos de discussão sobre o assunto e busca sempre capacitação. “Eu acredito que, através desses espaços de fala, nós vamos sim conseguir fazer com que melhore”, conclui.
“Quando eu era criança, cheguei a falar que eu queria ser policial”
Enquanto a Polícia Civil abre oportunidades para todos os gêneros, o ingresso das mulheres na Polícia Militar é mais difícil. A lei estabelece que no mínimo 10% das vagas em concursos públicos da PMSC sejam destinadas ao efetivo feminino.
Há quase dez anos, a cabo Iara Crepaldi, de 34 anos, atua na Polícia Militar de Criciúma. Além disso, também é professora do curso de Educação Física das Faculdades Esucri. Aliás, antes de se tornar policial, foi nessa área que ela começou a carreira, influenciada pelo atletismo, paixão que descobriu ainda na adolescência.
“Eu fui atleta pela Fundação Municipal de Esportes desde meus 13 anos, quando eu fui descoberta por um projeto que tinha em Criciúma, chamado Correndo pelo Futuro. Conquistei algumas medalhas a nível estadual e nacional também, sempre representando a cidade. Fui técnica de atletismo pela FME. Isso me induziu a fazer a faculdade de Educação Física”, lembra.
Após quase uma década dedicada exclusivamente ao esporte e já trabalhando nessa área, aos 24 anos, Iara, assim como Cris, teve o interesse despertado por um concurso público aberto. “Isso me chamou a atenção porque eu vi uma mulher fardada em uma placa, fazendo a propaganda de um cursinho. Quando eu era criança, cheguei a falar para a minha professora que eu queria ser policial”, declara a cabo.
O meu concurso tinha apenas 6% das vagas destinadas às mulheres. Hoje em dia, já aumentou um pouco esse percentual. Foi bem difícil o ingresso de nós mulheres na Polícia Militar justamente pela quantidade de vagas que tinham, muito pouco. Mas acabou dando certo. Fiz a escola.
Foram nove meses dedicados à formação em Tubarão junto a outras 38 mulheres prestes a se tornarem, oficialmente, policiais militares. “Nenhuma desistiu”, acrescenta Iara. Logo depois, a profissional trabalhou de 2014 a 2017 em Urussanga. Em seguida, conseguiu voltar para Criciúma, sua terra natal, e passou a integrar o 9º Batalhão de Polícia Militar (9º BPM).
“Não me imaginava fardada. Comecei estudando depois que abriu o edital. Realmente, era para ser. Sempre fui uma aluna muito dedicada na escola e acho que isso me ajudou porque tive pouco tempo de estudo. Fui aprovada”, disse.
Para se dedicar ao curso de formação de soldados da PM, é necessário sair de todos os empregos e focar apenas em aprender a ser policial. Assim, Iara retomou a carreira de professora após concluir esse processo.
Há quatro anos, a cabo é responsável pela Comunicação Social do 9º BPM. Além disso, Iara continua atuando como policial quase que diariamente nas ruas de Criciúma atendendo às ocorrências, juntamente com as equipes de radiopatrulha.
“Nosso batalhão é muito grande e tem uma demanda alta de ocorrências, efetivo e das várias funções que a PM exerce. Por isso, a Comunicação Social é tão importante para conseguirmos mostrar à população aquilo que está sendo feito”, esclarece.
“A Polícia Militar foi a melhor escolha que eu fiz”
Desde criança, já havia uma grande admiração de Iara pela profissão. No entanto, não foi exatamente um sonho que a seguiu desde a infância. Na verdade, o desejo ficou adormecido por alguns anos. O atletismo veio primeiro. Tudo mudou aos 24 anos, ao ver uma policial fardada.
Eu tinha o sonho de ser atleta olímpica, devido à quantidade de medalhas que ganhei durante a vida. Mas, depois, era uma fase, passou. E a Polícia Militar foi a melhor escolha que eu fiz. Sou totalmente realizada na profissão que exerço hoje.
“A policial militar, enquanto mulher, conquistou o seu espaço”
Há quase dez anos, quando Iara ingressou na PM, o desafio ainda era maior. Do total de mil vagas naquele concurso público de 2014, apenas 6% eram destinadas às mulheres. Cerca de 220 policiais militares atuam no 9º BPM e, desse total, 22 são mulheres, o que representa aproximadamente 10% do efetivo.
“Não é frequente a questão do preconceito, nem da parte interna, nem do externo. Alguns fatos isolados na parte externa, às vezes, nós escutamos. Mas, a gente é bem respeitada. Vejo que a policial militar, enquanto mulher, conquistou o seu espaço”, salienta.
Quando a mulher entrou na Polícia Militar, ela fazia apenas policiamento de trânsito, cuidava de crianças. Ela, pela competência, foi ganhando o seu espaço e hoje trabalha em todos os setores. Acho que esse respeito existe hoje.
Para Iara, as policiais militares que atuam hoje são o exemplo para que mais mulheres possam ingressar na corporação.
“Eu espero que tenha cada vez mais mulheres. Não desistam do seu sonho. Aquelas que querem ser policiais militares não desistam porque acho que toda mulher que conseguiu, em algum momento, achou que não conseguiria. Podemos estar em qualquer espaço que onde desejamos, basta focarmos no nosso sonho”, frisa.
A cabo destaca que ser policial militar não é um trabalho fácil, nem para homens, nem para as mulheres. “É uma profissão que exige muito da parte psicológica, intelectual e, principalmente, física. Acredito que estamos em uma quantidade boa de mulheres, em percentual. Mas, eu espero que as mulheres continuem conquistando cada vez mais o seu espaço. Se pudermos aumentar esse percentual de vagas, elas serão muito bem-vindas”, finaliza Iara.