Você entra no carro, gira a chave e arranca. Perto, em uma calçada, um pedestre sequer percebe, já que o motor recém acionado nem ruído emite. Quis faltar combustível? Um fio com uma tomada na ponta, plugado em uma fonte qualquer, lhe fará recuperar a carga e seguir viagem. Ficção científica? Que nada. Uma realidade muito mais próxima do que você, parte de uma sociedade dependente dos automóveis, pode imaginar.
“O carro elétrico já é uma realidade”. O anúncio, com dose de entusiasmo e a necessária cautela, pois muitas realidades precisarão mudar, vem do engenheiro Fernando Luiz Zancan. “Imagine uma cidade sem o barulho dos carros. É possível”, sentencia.
Faça tal exercício. Agosto terminou com 150 mil veículos, entre carros, motos, caminhões, ônibus e outros, circulando pelas ruas de Criciúma. Pense em toda essa frota sem o ruído dos motores. “O fim da poluição com a plataforma silenciosa do carro elétrico é uma grande novidade”, aponta o professor André Tavares, coordenador do recém-inaugurado Núcleo de Mobilidade Elétrica (NME) da SATC. É dali que vêm as ideias que fazem evoluir não somente a tecnologia do carro sem ruído. Vai muito além.
"É tecnologia em tudo. E queremos estar ao par dela. E estamos. Aqui, em Criciúma”
Carlos Antônio Ferreira, diretor da Satc
Carregando na tomada, em casa
O carro do futuro, ou quase do presente, além de se mover com um motor extremamente silencioso, não precisa queimar combustível. Ele abre mão da gasolina para acionar seus componentes a partir da energia elétrica, a mesma daí, da sua tomada. “Com esse carro do futuro, qualquer um de nós poderá carregar o carro em casa, na tomada da garagem”, destaca o professor Carlos Ferreira, diretor da Satc.
Um veículo que não transpira os gases que já estão em nossas rotinas e narinas, e que não oferece ruídos. A solução para parcela considerável dos problemas urbanos chegou, certo? Calma. Ainda há um longo caminho a ser percorrido.
A novidade se chama Inowattis
Inovação é o mais moderno rótulo de novidade que pode haver. Quer chamar de novo? Apela para a inovação. Quando, há menos de dois anos, o professor Zancan provocou alunos das engenharias da Satc a desenvolver algo além de um protótipo motorizado para treinar habilidades de montagem e desmontagem de componentes mecânicos, ele se lembrava do tanto que vê nas constantes viagens que faz pelo mundo por força da sua atividade, de presidente da Associação Brasileira do Carvão Mineral.
Nasceu de uma provocação
“Por que vocês não fazem um carro elétrico”. A provocação de Zancan, menos interrogativa e mais afirmativa, carregada de um sonho, deu frutos. A partir de maio de 2017, um Ford Ka 2009 passou a ser transformado na novidade. Logo ganhou um nome, um design próprio, um motor onde a sujeira da graxa desse lugar à limpeza impecável resultante do ambiente de cargas e descargas elétricas e... pronto. Nascia o Inowattis, o carro elétrico da SATC, o primeiro do gênero montado em Criciúma.
“Desenvolvemos um motor adaptado, com base em eletricidade, e alteramos o que foi possível. Não há uma gota de gasolina aqui”, garante o professor André, diante da criação de um grupo que, ao todo, reúne mais de 40 pessoas entre engenheiros de várias áreas e outros tantos profissionais.
Leve, limpo e muito catarinense
O motor do Inowattis não é de nenhuma multinacional consagrada que cria as estruturas de rotação dos carros tradicionais. Não. É de Jaraguá do Sul, da catarinense WEG. Mas, como se trata de um projeto ainda em elaboração, há muito no que evoluir. “Nosso grande desafio hoje é lidar com o abastecimento”, reflete o professor Carlos Ferreira. Um problema não somente da SATC, mas de todos que estudam carros elétricos.
“Com as baterias que usamos, de chumbo ácido, da mesma tecnologia das atuais, nosso carro tem autonomia para 50 quilômetros”, refere o professor André Tavares. O Inowattis carrega feixes de baterias no fundo do porta malas. Cada uma tem 37 quilos e leva de 5 a 8 horas para alcançar carga máxima. “O carro será como um celular. Você chega em casa à noite e o deixa na tomada”, simplifica o professor Fernando Zancan.
Outra diferença do carro elétrico: ele será sempre de câmbio automático. Não há necessidade de trocar marchas. “A marcha dos motores convencionais serve para acionar dispositivos que vão acelerar ou desacelerar o carro. No elétrico, isso não existe”, explica o coordenador do NME. “Assim, é possível um motor mais leve e menos custoso para manutenção. Tem menos peças”, expõe André.
Um botão, três funções
O singelo e limpo painel do Inowattis resume essa realidade. Em uma tela despontam as letras D, P e R. Em Drive, o carro entra em ignição, a chave é girada e ele liga. Basta deslizar o botão para Parking e acelerar, que ele sai do lugar. Quer fazer uma marcha à ré? Desacelera e arrasta o mesmo botão para Reverse.
“O motor adaptado está em constante terceira marcha”, conta Igor Fontana, um dos egressos da Satc que mais fez as vezes de piloto do Inowattis. Acadêmico nas últimas horas de graduação em engenharia elétrica, foi um dos braços direitos do professor André no NME. Tanto que é para ele que o titular entrega a chave do carro quando são necessárias demonstrações e testes. “Se soltar o acelerador ele faz uma frenagem sutil. Ou seja, o modelo elétrico consome muito menos freios”, refere Igor.
Embora o pedal do freio continue ali, já que é a embreagem quem desaparece na transição do combustível para a eletricidade, vai mudar o conceito de brecar o carro. “É um freio sutil, leve, estruturado em uma bomba de vácuo”, relata Igor, agregando e enaltecendo um dos conceitos do veículo adaptado.
"A Satc vai trabalhar não só com carros elétricos. Testamos também patinetes, bicicletas e até cadeiras de rodas. Tudo com tecnologias de baixo carbono. A possibilidade elétrica é uma realidade infinita”
Fernando Zancan, diretor executivo da SATC
Nem o Detran registra ainda
Mais um dos desafios a ser vencido está na temperatura. Por mais que a tecnologia avance, os carros atuais ainda precisam de refrigeração, já que o superaquecimento é ainda uma realidade. “Na próxima etapa do projeto, vamos retirar a caixa de câmbio e colocar outro motor, mais leve e refrigerado a água”, observa o professor André. O modelo atual ainda depende da refrigeração a ar.
Estes e outros poréns técnicos esbarram, ainda, em um problema burocrático para o Inowattis. “Não temos como registrar ele no Detran”, revela o professor Carlos. É que a legislação brasileira ainda não incorporou o modelo elétrico aos aceitáveis pelos registros oficiais. Por isso que, para sair na rua com o seu carro inovador, a SATC precisa providenciar escolta.
Não tenha pressa
O carro elétrico montado na SATC não passou, até hoje, de 78 quilômetros por hora. Desempenhou essa velocidade em um dos testes em uma alça do Anel Viário de Criciúma. Mas enquanto se buscam meios para acelerar o motor, é necessário pensar nos demais desafios. “A infraestrutura das cidades, o abastecimento e manutenção”, elenca o professor André Tavares. “Precisaremos de eletropostos para abastecer, de baterias mais leves e duráveis e de mão de obra qualificada para cuidar desses carros”, emenda o professor Carlos Ferreira.
Avanço fora do Brasil
Mas tudo isso já existe. Fora daqui. Tanto que Ferreira e o professor Zancan estiveram, em maio último, em uma das plantas industriais da Tesla Motors, gigante de tecnologia nos Estados Unidos e que está empenhada em desenvolver carros elétricos em larga escala. Nas ruas norte-americanas já circulam 750 mil. O maior mercado mundial é o da China, com mais de 1,2 milhão. No total, cerca de 3 milhões de automóveis elétricos rodam mundo afora.
“A Tesla já tem três modelos, bonitos, funcionais, com alta tecnologia e velozes”, explica Carlos.
Dedo de Criciúma na fabricação americana
E tem digital criciumense na fabricação em larga escala que a Tesla Motors promove nos Estados Unidos. Engenheiro formado na SATC, Anderson Pacheco saiu de Criciúma para atuar nas gigantes linhas de produção dos carros do futuro. “Trabalho no design. No mercado europeu, buscamos equipamentos. Com garantia de mercado, começamos a produzir”.
“Eles criaram tudo do zero. Eu dirigi um carro de aceleração tão rápida que você cola no banco, tira o pé do acelerador e ele reduz já freando. Une potência alta, silêncio e beleza”, resume o professor Carlos Ferreira. Nas conversas com Anderson, a tentativa de descobrir um dos muitos segredos industriais, que, claro, a Tesla guarda a sete chaves: a bateria.
“Seguimos estudando modelos mais leves e duráveis”, despista o ex-aluno.
Do projeto ao sonho
Do volante do Inowattis, acelerando e freando nas ruas do campus da SATC, o quase engenheiro Igor Fornasa carrega os sonhos hoje cristalizados por Anderson Pacheco nos Estados Unidos: sair de Criciúma para o grande epicentro do desenvolvimento tecnológico do carro do futuro. “Buscamos uma bateria de lítio mais leve e menos vulnerável”, cita Igor, tentando descobrir o que os colegas da Tesla vêm tentando guardar, um meio confiável de manter cada vez mais carregados os novos carros.
Das bombas de gasolina às tomadas
Enquanto o Inowattis precisa de até oito horas de carga para andar 50 quilômetros, qualquer dos modelos da Tesla viaja até 500 quilômetros com meia hora de carga na tomada. “Nos Estados Unidos existem postos de abastecimento por todo o país”, cita Anderson. Enquanto isso, no Brasil, os primeiros postos estão testando o sistema. “Nossa lei não permite vender energia. Compramos de distribuidoras e cooperativas, mas venda a varejo não existe”, menciona o professor Carlos. Importantes reflexões sobre algo fundamental, garantir a circulação dos carros do futuro.
A Celesc fez testes de pontos de abastecimento elétrico para carros em Santa Catarina. Nenhum perto de Criciúma. Em um posto na BR-101, em Joinville, havia três modelos de tomadas disponíveis. E aí reside mais um problema. Qual o padrão das tomadas para recarregar carros? O Brasil vai precisar definir isso também.
“Aqui existe uma parcela gratuita e uma parcela paga de energia nos postos”, conta Anderson. “Se tem paciência, carrega em casa que demora mais. Senão, vai em algum eletroposto de recarga rápida, daí com mais custo”, refere. “Enfim, tudo vira mercado”.
E como ficarão as petrolíferas, não vão se opor a um modelo que praticamente abole o combustível? “O petróleo tem muitas outras serventias, seguirá sendo usado”, assegura o professor Zancan. Até o carvão, fração importante da economia regional, poderá colher frutos. “Estamos trabalhando na tecnologia de fazer energia com carvão sem emissão de gás carbônico”, lembra. “Tecnicamente, já conseguimos capturar o carbono, precisamos achar a viabilidade econômica”.
"Motores elétricos ajudam a diminuir o aquecimento global, sendo parte do transporte consciente”
Anderson Pacheco, engenheiro da Tesla Motors
Rumo às ruas, próximos anos decisivos
Ainda não há unanimidade quando o assunto é a popularização do carro elétrico. “Em 2025 teremos vários já”, projeta, otimista, o professor Carlos Ferreira. “Mas depende de políticas públicas de modelo e abastecimento, com regulamentação. Será preciso iniciativa de governo”, cobra o diretor Fernando Zancan, que vai além. Prevê que em 2030 cerca de 30% do mercado já terá a nova tecnologia. “Antes, em 2025, de 8% a 20%, podendo chegar a 20 milhões de unidades”, estima.
O professor André Tavares imagina que a próxima década será decisiva. “Hoje temos pouco mais de mil carros elétricos no Brasil, todos importados”. Mas iniciativas de grandes empresas vão encorpando o processo. Uma grande fabricante de bebidas brasileira encomendou à Volkswagen mais de mil caminhões e utilitários movidos a eletricidade para rodar pelo país. “Em dez anos o cliente brasileiro terá acesso a uma assistência qualificada”, destaca.
A manutenção do carro elétrico será muito mais barata. Não tem óleo, praticamente, só o dos freios. É mais uma marca da sustentabilidade”
André Tavares, coordenador do NME Satc
“Acredito que vai chegar o híbrido primeiro, e depois o carro elétrico. O brasileiro é muito inovador. Daqui a pouco o mercado vai exigir isso”, enfatiza Anderson, exemplo do que a SATC almeja para o futuro. “Mais que fazer carros, queremos é formar profissionais, mão de obra tanto para fabricar quanto dar manutenção”, frisa o professor Carlos. Os currículos e grades dos cursos de engenharia na instituição já oferecem espaços cada vez mais generosos ao estudo do Inowattis e da sua próxima geração que já repousa sob olhares curiosos, a parceria com a Mobilis, de Florianópolis. “Estamos trabalhando em motores mais leves”, antecipa o professor André.
As experiências colhidas em recentes visitas à Itaipu Binacional no Paraná, e em Campinas, São Paulo, oferecem mais e novas perspectivas. “Nos deram elementos para a SATC estudar novos modelos de carros elétricos. Em Campinas conhecemos o projeto da chinesa BYD, que colocou táxis elétricos a rodar nas ruas com bons resultados”, relata Carlos. De Itaipu, vieram dois kits com motores e fiação para montagem de mais carros. Ou seja, o sonho de apressar logo a chegada do futuro continua. Com menos fumaça do combustível, e mais correntes de eletricidade.