Em 6 de fevereiro de 1952, a jovem Elizabeth representava seu pai George VI em uma viagem pela África. Cumpria agenda no Quênia ao lado de seu marido Phillip. Eis que chegou a notícia da morte do rei em Londres. Coube a Phillip contar a Elizabeth o que ocorrera e, minutos depois, seu ajudante-de-ordens fez a pergunta crucial: "qual nome a senhora usará?". "Nome?", respondeu ela. "Com qual nome a senhora reinará?", retrucou ele. "Eu tenho um nome, Elizabeth. É esse".
Ali, a princesa deixava de ser princesa e passava a ser rainha de uma potência do pós-guerra. Anos antes de subir ao trono, com seu pai reinando saudável, com grande apoio popular e sem qualquer perspectiva de mudança breve, Elizabeth fez sua primeira viagem internacional em nome do Reino Unido. Também à África, em 1947, já casada com Phillip. E de lá, ao comemorar 21 anos, fez um comunicado por rádio no qual declarou uma frase célebre que tornou-se sinônimo de seu longo reinado: "Eu declaro diante de vocês que toda minha vida, seja ela longa ou curta, será dedicada ao seu serviço e ao serviço da nossa grande família imperial, à qual todos nós pertencemos".
Elizabeth mal sabia, mas acabava de pronunciar um verdadeiro legado, hoje tão latente passados exatos 70 anos do dia em que tornou-se rainha. Pela sua longevidade, a antiga líder vai dos gracejos ao respeito, superando crises com extrema habilidade e conseguindo, depois de sete décadas, gozar de um prestígio que é a verdadeira base da monarquia britânica.
Se há (e há de fato) uma leitura anacrônica do papel da monarquia, existe, no caso britânico, um exemplo conferido que deve ser levado em conta. Aquela visão ilusória, de um monarca ocioso, arredio às rotinas administrativas e afeito a festejos e futilidades, passa longe do papel responsável de Elizabeth. Depois das dificuldades comuns a um início de reinado de uma jovem princesa, logo ela tomou pulso da situação e exerceu com precisão o papel que o destino lhe conferiu: não ser epicentro de polêmicas, equilibrar as relações em nome da pacificação nacional e, quando necessário, erguer a mão perante às questiúnculas do dia a dia em nome do bem maior: a nação.
Para o republicanismo que evoca o lado exótico da monarquia, da riqueza e do glamour nos quais vivem a família real, a resposta de Elizabeth, embora passível de questionamentos, é tão enfática quanto emblemática, e faz convencer a população de que não é um bom negócio trocar a coroa pela faixa presidencial. A rainha mostra que "mais vale uma família real para a vida toda do que uma nova família real a cada quatro anos, algo comum das Repúblicas".
Mas Elizabeth colecionou falhas ao longo dos anos, o que a torna humana. Há quem diga que sua frieza nas relações familiares criou o solo fértil para as instáveis relações estabelecidas por seus herdeiros. Que o diga a profunda crise, que faz sangrar até hoje o legado do futuro rei Charles, o primogênito da rainha que casou com Diana, a princesa dos sonhos, a perdeu por conta de suas aventuras extraconjugais e hoje está casado justamente com a mulher que foi o epicentro da crise matrimonial passada. Os britânicos, que esperavam ver Diana rainha, verão Camila. A rainha, com a paciência e a sabedoria que o cargo lhe exigem, admitiu neste sábado, véspera do jubileu de platina, que Camila será rainha, e deve ser tratada como tal. Afinal, é a mulher do futuro rei.
Ainda no capítulo das falhas da rainha, houve um episódio marcante em outubro de 1966. O rompimento de minas de carvão soterrou uma localidade no País de Gales e matou mais de uma centena, entre uma maioria absoluta de crianças. Houve comoção internacional mas Elizabeth demorou a reagir. Ela admite, até os tempos atuais, que foi a maior falha de seu reinado. O episódio trouxe à tona, também, a dificuldade que a rainha tem de se emocionar. Ela "disfarçou" uma suposta lágrima que teria escorrido em seu rosto ao ver o cenário da catástrofe mas depois, na intimidade do palácio em Londres, admitiu com raiva de si que "não conseguia chorar".
Foi essa capacidade ímpar para as emotividades que, de certa forma, pode ter contribuição decisiva para um reinado tão longo. Elizabeth não escandaliza. Não sai do prumo, chegando a pecar pelo excesso de cautela. Assim foi, também, quando Diana morreu. O povo exigiu dias a fio uma posição da Coroa, que demorou a chegar. Mas chegou. Afinal, se acabara de morrer a mulher que rompeu com o futuro rei, também havia partido a mãe dos netos de Elizabeth, mãe do futuro rei William. Aliás, pela sua popularidade, William e sua mulher Kate são muito mais garantias de uma sequência saudável da monarquia britânica, ao contrário dos percalços que um futuro reinado de Charles enfrentará. Mas até nisso, sem querer e amparada pelo destino, Elizabeth tem colaborado. Afinal, ao reinar por tanto tempo, ela deixa um prazo cada vez menor para Charles ser um rei de transição para o filho que futuramente terá, pela sua juventude, um tempo maior para sentar ao trono.
E daí, o que tudo isso tem a ver conosco? Quais as lições que esse amontoado de reflexões nos permitem? Simples.
Elizabeth ensina ao mundo (e há muitos poderosos de ocasião que insistem em não aprender) que poder é também resignação (nem sempre o poderoso tem razão). É respeito ao sentimento público (mesmo tendo uma fortuna pessoal). É humildade para reconhecer falhas (citamos dois casos, o do País de Gales e o da morte de Diana, de tantos outros). Exercício de poder é sentimento de dever (ela poderia ausentar-se aos 95 anos, mas não, indica que cumprirá aquele compromisso lá de 1947).
E uma rainha, no exercício de poder que pode ser aplicado com naturalidade por primeiros-ministros, presidentes e afins, não está acima da lei. Precisa cultivar e praticar valores que sirvam de exemplo. A história prova que quer, age, e quando não age, o faz pois, como Elizabeth sempre diz aos próximos, "o mais difícil que existe é não fazer". E, muitas vezes, é tempo de não fazer também. Apenas de dar o exemplo, da prudência, do cuidado, do zelo. E do respeito aos valores nacionais sem discursos e arroubos sem consistência prática.
Chefiar uma família real carrega privilégios, mas impõe muitos deveres. Essa "jovem senhora" cuja vitalidade de 95 anos nos surprende está aí para provar.