Era final de março.
Estava oficialmente encerrada a temporada de veraneio eu supunha.
Ir à praia depois da temporada era como ir à igreja quando não há missa, padre ou fiéis.
É o momento ideal para mim.
A praia estava com a maioria de suas casas fechadas. As ruas estavam desertas.
Havia um vento varrendo o que sobrara do verão.
Era quente ainda. Mas poucas pessoas passeavam a beira-mar.
A luz do sol incidia quase outonalmente sobre nós e sobre todas coisas.
As coisas. Os carros. As casas.
Paramos o carro em frente a casa de praia da nossa família.
Como todas as coisas, lá estava ela, no mesmo lugar.
Assim são as coisas. Nós passamos, elas permanecem.
Incomodou-me num primeiro instante que a casa ainda estivesse lá.
Tantas pessoas já não estão.
O tempo, ultimamente, levando tanto consigo!
Mas a casa de praia não.
O tempo não a levara. Ela estava lá.
Estava com outras cores nas paredes e janelas. Tinta nova e fresca a cobriam. A grama que a cercava estava aparada.
Tanto tempo depois e eu a encontrei renovada.
Se pudéssemos conversar eu lhe diria, ironicamente, o quanto rejuvenesceu.
Desci do carro e parei na calçada em frente ao muro da casa.
Com o olhar, desafiei a sua aparente juventude.
Corajosamente, pulei o portãozinho que lhe dava acesso.
A grama verde e bem cuidada parecia enroscar-se em meus pés.
Senti que a casa, imponentemente, demarcava seu território de canto a canto.
Eu era uma intrusa naquele terreno.
Reconheci ter perdido o desafio assim que pisei no gramado.
A casa ficou maior e eu encolhi com o barulho ensurdecedor das lembranças que a habitavam.
Tentei fitá-la como quem quer continuar o desafio, mas a força para erguer a cabeça e encarar aquelas paredes, portas e janelas, precisava ser maior do que toda a força que eu dispunha naquele momento.
Abaixei a cabeça e caminhei até a varanda, tentando não sucumbir ao vendaval de emoções que me assolava.
O vento teria ficado mais forte?
Ou seria a força das memórias presas dentro da casa quase me jogando para longe?
Em frente a porta de entrada, confortou-me saber que eu não tinha a chave e não entraria ali, por onde tantas vezes saí.
Ouvi o ranger dos ganchos da rede, a voz da minha infância, da infância de meus irmãos, sobrinhos e filhas.
Todas as infâncias em seus verões estavam ali.
Empurravam a porta fechada tentando abri-la a força.
Minha adolescência em seus verões quase saltava a janela.
Todas as adolescências que veranearam ali alvoroçaram-se com minha presença.
Assustada, caminhei ao lado da casa percorrendo toda a extensão da varanda.
Próxima a cozinha ouvi os sons dos pratos, talheres e copos sendo postos a mesa.
Vozes animadas voltando do mar.
Senti o cheiro da comida de minha mãe e a fome de todos ao seu redor.
O passado abraçou-me convidando a juntar-me a ele.
Meio sem vontade, virei a esquina da casa que dava para a parte dos fundos.
Parada em frente a porta da cozinha eu desejei ardentemente aceitar o convite e sentar para almoçar com as lembranças e matar minha fome e minha sede do passado.
Eu pensei que poderia ficar ali nos fundos da casa da praia para sempre e viver daquelas lembranças.
Eu teria ficado ali como alguém que senta ao lado de um baú de cartas e fotos antigas e passa seus dias revendo-as, relendo as e alimentando-se de lembranças.
Eu achei que poderia suportar todas as memórias tristes guardadas naquele 'casa baú' só para sentir outra vez o cheiro da comida da minha mãe e me sentir junto de todos voltando do mar ansiosos pelo almoço.
Parei de pensar por alguns segundos e olhei para a garagem.
Enxerguei as mulheres da casa lavando roupas no tanque e os homens da casa lavando os carros enquanto as crianças tomavam banho na piscina de plástico.
Toda aquela água começou a respingar em mim.
Estava muito quente.
A água e as lembranças eram frias.
As lembranças jorravam pelas frestas e eu não as queria fora.
Precisava deixá-las.
Se caminhasse um pouco mais eu chegaria ao final daquela parede e virando a próxima esquina da casa eu encontraria o caminho de volta.
Pensei no que faria. Cheguei a perguntar em voz alta o que deveria fazer agora.
Caminhei até o fim da parede e, dos fundos do patio, enxerguei a rua, o carro e dentro dele as pessoas que eu amava.
Caminhei rápido abafando as vozes dentro da casa e dentro de mim.
Caminhei me recompondo.
Caminhei sentindo o que estava deixando para trás a cada passo que dava.
O gramado acabou e passei por cima do portão novamente para deixar o pátio da casa.
Sentei no banco do carro e, com as pernas ainda para fora, olhei novamente para casa.
Algumas lágrimas desnecessárias e teimosas escorreram limpando o orgulho dos meus olhos.
Nada em mim era desafiador ao olhar para a casa agora.
Eu havia caminhado ao redor da casa e estava de volta ao carro. Isso era tudo.
Olhei uma ultima vez para a casa, desta vez com respeito.
E com uma gratidão dolorida. Mas ainda assim, olhei com gratidão.
Quando o carro partiu desejei por um instante que a casa deixasse de existir.
Sou assim. Gosto quando as coisas quebram, porque eu não sei o fim delas.
Mas na esquina daquela rua percebi que era entro de mim que aquelas vozes começavam a silenciar.