Dar oportunidades àqueles que, muitas vezes, nem imaginavam poder se graduar. Foram cinco anos dando forma ao projeto que, neste mês de agosto, começou a mudar a vida das pessoas na região. Mais do que uma política de ingresso, o Programa de Equidade Racial é um instrumento de permanência na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc) e visa atender estudantes negros, pretos, pardos e indígenas.
Jô Mendes, de 45 anos, está cursando Artes Visuais na Unesc. Natural de Santa Cruz do Capibaribe, em Pernambuco, o estilista veio para Criciúma há um ano, especialmente, para se especializar na sua área de atuação: moda e estilismo. Aqui, no município, ganhou uma bolsa de estudos, através do Programa de Equidade Racial e, há uma semana, ingressou no corpo discente da instituição.
“O que me trouxe para o Sul, é a questão de oportunidade de trabalho e poder me capacitar, buscar mais conhecimento, que, infelizmente, Pernambuco não oferece. Por exemplo, lá não existe um mestrado em Moda. Até tem, mas o preço foge da realidade da região em si, do Nordeste”, explica Jô. “Eu vim para cá, mas não conhecia nada e não tinha possibilidade de fazer curso superior”, completa.
No início, quando chegou aqui, o estilista buscou se estruturar na cidade para depois, quem sabe, cursar Moda e adquirir conhecimento em outras áreas de atuação. Mesmo em meio às dificuldades, o pernambucano foi persistente. Não desistiu. Ergueu a cabeça e buscou, dia após dia, ir atrás dos seus sonhos.
“Antes da moda me abraçar, eu sempre gostei de fazer pinturas, gravuras, trabalho artesanal, desenho, flores, tecido, papel e texturas, mas eu não sabia que existia um curso direcionado a isso 100%. Eu comecei a pesquisar muito, mas a realidade financeira não me dava oportunidade”, conta Jô.
Foi aí, então, que surgiu o interesse em Artes Visuais. “Eu sempre gostei de mexer com artesanato e tudo que envolve arte, música, poesia, literatura e cordel. Como viver disso é complicado no Nordeste e no Brasil em si, eu me inclinei no mundo da moda. Fiz curso de corte e costura, modelagem, desenho, tudo que eu podia”, enfatiza o acadêmico.
Amante da moda e da arte, Jô Mendes uniu as duas áreas para se especializar. Mas, antes de entrar no curso de Artes Visuais da Unesc, o mais importante, e fato propulsor desta oportunidade, o Programa de Equidade Racial, lançado recentemente. “Tive o prazer de ser abraçado por esse projeto”, frisa Jô.
“Eu tinha vontade de ingressar na faculdade, porque sabia que seria um divisor de águas para mim. E me disseram que teria essa cota dos negros e pardos, aí eu fiquei ansioso. Quando me ligaram e falaram que o projeto iniciou, vi que tinha o que eu queria, Artes Visuais, não pensei duas vezes”, relembra o acadêmico.
Assim que soube do Programa de Equidade Racial e teve acesso ao edital, o estilista reuniu os documentos e foi em busca da bolsa - que funciona além da oportunidade de estudar e frequentar um ambiente acadêmico. Ela gera esperança e pertencimento.
“Não só o estado, mas o Brasil e o mundo, deveriam fazer esse papel socioeconômico de acolher as pessoas, porque sabemos que vivemos em um país com classes sociais diferentes, infelizmente, essa é a realidade. O negro, em si, aparentemente, só tirou as algemas e as correntes, mas o povo, se pudesse, colocaria em senzalas”, acrescenta.
Assim como Jô, dezenas de estudantes partilham deste sentimento de pertencimento e acolhimento na Universidade. “Por isso, achei importantíssimo. Levanta a autoestima, porque estamos ali em busca de oportunidades. Somos todos iguais. Mais do que importante, é essencial. Psicologicamente, financeiramente. Já pensou você poder fazer um curso superior que tanto almeja?”, indaga.
Iniciativas como esta, para Jô, merecem ser replicadas em inúmeras instituições país afora. “É um projeto que abraça, que conversa com você e vê a sua realidade socioeconômica. Ele serve como um exemplo para todo o Brasil. Ver a realidade e a preocupação com a conscientização negra e parda”, finaliza o acadêmico.
Marco histórico
Para a coordenadora da Secretaria de Diversidades e Políticas de Ações Afirmativas na Unesc, Janaina Damásio Vitório, o lançamento do projeto é um momento histórico. “Estamos muito felizes e surpresos, inclusive, com o impacto que esse programa causou na comunidade, a comoção. Temos feito o processo seletivo com uma banca de identificação dos alunos que se enquadram nessa modalidade de bolsa. E percebermos o quanto isso é significativo na vida das pessoas”, enfatiza.
Para isso, são oferecidas bolsas de 100% - para aqueles que possuem renda até 1,5 salário mínimo - e 50% - para pessoas que recebem até três salários mínimos. Neste primeiro semestre, 255 alunos vão receber a oportunidade de estudar com ajuda financeira nas áreas da Saúde, Ciências Sociais, Licenciatura, Engenharias e Tecnologias.
O programa é resultado da luta do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, o Neabi, e da Secretaria de Diversidades e Políticas de Ações Afirmativas da Unesc. “Estamos recebendo acadêmicos de 17 anos, mas, também, estudantes com mais de 50 anos. Tem sido emocionante participar da etapa do processo”, afirma Janaina.
“A política de cotas é uma política que, para nós que estamos no meio e estudamos sobre isso, já sabemos que existe. Mas a gente está trabalhando com um público que nem sequer sabe dessa possibilidade. O Programa de Equidade Racial veio e esperamos que para ficar”, ressalta.
“Não basta só inserir no contexto”
Abrir as portas é fundamental. Mas, para além disso, se faz necessário pensar na estrutura que vai manter o acadêmico pelos próximos quatro ou cinco anos, até completar a graduação. Por isso, criou-se uma rede de setores com grupos que acolhem os novos alunos.
“Hoje, o Neabi e a Secretaria de Diversidades estão dentro do Centac (Centro de Atendimento ao Acadêmico). Estamos nos três períodos recebendo, acolhendo, orientando e dando esse suporte. Porque, para quem não conhece, a universidade pode ser um universo muito assustador”, comenta a coordenadora.
Segundo Janaina, é preciso pensar além do ingresso. Por conta de sua realidade econômica, mesmo com uma bolsa de estudos integral, muitos estudantes não têm condições de, por exemplo, arcar com os custos dos materiais do curso.
Não basta só inserir no contexto, a gente tem que estar preparado para isso. É uma política que não é só não ter que pagar a mensalidade. Mas como que vai se garantir essa permanência?”, salienta Janaina.
A partir de agora, o Programa de Equidade Racial continua em evolução. A ideia é criar grupos de acompanhamento para apoiar o acadêmico em todas as esferas.
“O ingresso é muito importante, mas a permanência com sucesso é fundamental”, conclui.