As lágrimas rolaram pelo rosto de Liliane Nart Grassi e sumiram atrás da máscara que cobre o seu nariz e boca. A emoção que toma a enfermeira e também coordenadora do setor de enfermagem das áreas clínicas do Hospital São José (HSJ), é a mesma dos colegas de trabalho.
Eles estão distribuídos ao longo de um dos principais corredores da instituição de Criciúma, em direção a eles, um grupo de oração munidos com violão e violino que cantam em homenagem aos profissionais. O motivo: uma das integrantes do grupo recebeu alta após superar o novo coronavírus (Covid-19), mas além de festejar a vitória da amiga, eles resolveram render homenagens aos profissionais da saúde.
Liliane é um dos muitos profissionais que desde março tem hora para sair de casa e não tem para voltar.
Somente no Hospital São José, são cerca de dois mil profissionais envolvidos nos atendimentos aos pacientes de coronavírus. Neste grupo, além daqueles que estão na linha de frente como médicos, enfermeiras, fisioterapeuta, têm também profissionais que atuam na higienização, cozinha, lavanderia, manutenção, entre outros. “Todos estão sendo incansáveis e comprometidos. Partimos de 30 leitos de UTI para 70, isso envolve uma gama de pessoas muito grande, seja contratação, capacitação ou para tocar esta linha de frente”, ressalta o médico infectologista e diretor técnico do Hospital São José, Raphael Elias Farias.
Cerca de 400 funcionários positivaram, sendo que, segundo Farias, a grande maioria não se contaminou dentro do hospital. Em janeiro de 2021 a unidade hospitalar registrou o óbito de um colaborador. Rosimere dos Santos, de 54 anos, não resistiu às complicações do vírus.
Homenagem dos profissionais do Hospital São José à Rosimere dos Santos:
"Aprendemos a sorrir de máscara”
Tarde de uma terça-feira de verão em Criciúma. O calor é forte. As notícias de que dois pacientes curados da Covid-19 receberam alta se espalha rapidamente e em poucos minutos, os profissionais se reúnem em um dos corredores do hospital, por onde as duas pessoas vão passar. O violão já está afinado, dele sairá as notas das canções que irão embalar a saída.
Ao surgirem no segundo andar, antes de descer a rampa com direção à portaria, as lágrimas se confundem com o riso e por alguns instantes os profissionais conseguem esquecer o cansaço. “Nós aprendemos a sorrir de máscara. A gente é muito humana. A gente toca, abraça, chora junto, acalenta. Às vezes o paciente está com dor e só precisa do nosso carinho e com a vinda dessa pandemia a gente não pode abraçar, nem tocar, mas não deixamos de sentir o que o paciente está precisando. Então, aprendemos muitas formas de sorrir, de abraçar, de tocar, mas sem o físico”, salienta Liliane.
Ainda no início da pandemia, o HSJ montou um comitê de crise para traçar estratégias, protocolos e divisão de fluxo. “Depois começaram a surgir os pacientes com tudo já estruturado e quando realmente começou a aumentar o número de casos, este comitê, que envolvia várias pessoas, suprimentos, farmácia, almoxarifado, compras, qualidade, foi muito importante para este contexto. Um grupo de pessoas se reunia diariamente avaliando os nossos indicadores, casos e tudo mais e traçando estratégias de médio, longo e, principalmente, de curto prazo, como estava o estoque, leitos, ocupação e tudo mais”, diz o diretor técnico.
“O medo do desconhecido não só na hora de tratar, mas no início, de pegar”
O médico intensivista e coordenador do Serviço de Terapia Intensiva do hospital, Felipe Dal Pizzol, traz consigo a experiência de ter combatido a epidemia do H1N1, quando chegou a ter uma UTI exclusiva para o tratamento dos pacientes. Na pandemia do coronavírus, são 40 leitos exclusivos. “Os desafios foram múltiplos, entre eles, primeiro lidar com algo que não se conhecia e que não tem um tratamento específico ainda, o que se tem para fazer é muito pouco do ponto de vista de tratamentos. O medo do desconhecido não só na hora de tratar, mas no início de pegar, mas progressivamente o medo foi diminuindo, mas ainda existe, é claro”, fala.
E estes desafios iniciaram já na hora de se vestir. “As rotinas de como se vestir, se lavar, de como fazer com os óculos, de como ir para casa depois. Se tomava banho antes de sair ou não. Coisas que passavam pela cabeça de todo mundo. Se um banho ia resolver ou se tinha que jogar a roupa fora, isso foi um desafio. A gente sabe muito mais hoje, de contágio e várias coisas que fizeram com que a gente ficasse mais normais com a situação, com uma forma mais normal de lidar do que no começo. Para mim era muito esquisito. Eu levava pelo menos cinco minutos para me vestir, hoje eu levo 15 a 20 segundos. Isso impactou bastante. Esta coisa de ir para casa impactava bastante, as rotinas que mudaram em casa. Entrava sem roupa praticamente, deixava as roupas penduradas”, lembra.
“Quase chorei porque eu não queria pegar”
Há cerca de um mês Dal Pizzol se contaminou e se curou da doença. “Quase chorei porque eu não queria pegar, me cuidava e, principalmente o medo de levar para casa, um medo que acho que continua para todo mundo. Não tem tratamento, a gente tem visto hoje, mais do que antes, pessoas jovens na UTI, pessoas jovens morrendo, o medo de levar para casa persiste e ficou, digamos, mais natural. Antes o medo era mais irracional, vinha no automático. Agora as pessoas pensam melhor. Se lavar direito as mãos e usar direito a máscara você vai ter uma proteção próxima de 100% e o desconhecimento de antes fazia com que você ficasse meio paranoico”, aponta.
O médico relata que para ele todo o caso é ruim e fala de períodos enfrentados no decorrer da pandemia. “Me lembro que a gente tinha um paciente grave de pulmão uma vez a cada dois meses. Chegamos a ter metade da UTI com pacientes nesta situação. De uma maneira global, todos os pacientes marcam muito, por ser algo complexo, desafiando o que a gente conhecia e já não sabíamos se o que fazíamos para os outros era bom para estes e isso é outra coisa que aprendemos muito durante a pandemia. Em qualquer lugar do mundo que for falar, vai ser este o depoimento, que o aprendizado foi grande, sem dúvida cuidar muito melhor deles. Cuidado com as famílias, com o isolamento, isso marca. É uma situação difícil. O estafamento dos profissionais, o afastamento, ou porque são contaminados, ou por cansaço, tudo isso impacta. Tudo foi muito novo e intenso. A palavra que define é intensidade”, confirma.
“Estar isolada da família era a pior coisa para ela”
Não é novidade que o isolamento afeta os pacientes psicologicamente e para atendê-los, a equipe precisou ser ampliada e os protocolos alterados. A gente refez protocolos, a gente aumentou as intervenções. São muitos pacientes, funcionários, e mudamos para tentar auxiliar da melhor maneira possível. A psicologia não está no hospital para fazer terapia, está para cuidar de pessoas. Este é um momento que a gente precisou cuidar e inovar o máximo possível”, enfatiza a psicóloga, Amanda dos Santos de Souza.
Entre os casos que mais lhe chamaram atenção está uma paciente que sofria profundamente por estar longe da família. “Estar isolada da família era a pior coisa para ela. Não era nem o diagnóstico, era estar longe de quem ela amava e a gente teve que mudar e trazer este carinho para nós que estamos ali juntos. Fortalecemos o que era importante para eles, o que realmente faria eles voltarem”, diz.
“Fiquei meses sem ver a minha mãe”
A pandemia também afastou Amanda dos tradicionais encontros com a família. “Como profissionais, nós também nos isolamos um pouco da família. Eu fiquei meses sem ver a minha mãe. Foram seis meses sem chegar perto dela porque tem doenças crônicas, apesar de ser jovem. E a gente não sabia até quando a gente estava transmitindo ou não. Então este sentimento do paciente de isolamento, era um sentimento nosso também. Quando passamos a ver que aquilo pode acontecer com a gente. Isso traz uma vontade e um desejo de viver muito maior. Todos estamos em um momento diferente da vida e precisamos ser resilientes para isso. Mas como vamos viver este momento? Estas foram as principais lições para a gente”, cita a psicóloga, acrescentando que percebe que o respeito pelos profissionais da saúde aumentou. “Muitas vezes quando falávamos que trabalhamos em um hospital ou do sonho em trabalhar em um hospital, as pessoas achavam ruim. Hoje, este olhar mudou”, relata.
“A família deles éramos nós”
O medo da maioria da população é o mesmo dos profissionais da saúde. “O medo de todo mundo de se contaminar, de se internar, era muito grande, então tivemos que aumentar muito a nossa atuação. Tivemos reforços na nossa equipe, estratégias de cuidados como a música que andou por todos os corredores para nós e para os pacientes”, acrescenta.
Com a mudança dos protocolos, aponta Amanda, o olhar foi a principal diferença. “A família deles éramos nós. Com o aumento das mortes, foi criado um protocolo pós-óbito também para a gente conseguir dar um atendimento para a família e praticar o que a gente tem feito, que não é só o carinho físico, é muito mais que isso. Tudo isso foi mudando a nossa rotina”, menciona.
Parece irônico, mas Amanda afirma que o isolamento aproximou as pessoas. “Aproximou a gente de forma diferente, psicologicamente. Esta foi a maior diferença: buscar um novo método de estar próximo sem poder fisicamente dar aquele carinho, aquele abraço, então buscamos estratégias para ocupar o tempo do paciente. Vimos que a Covid-19 deixa o paciente muito exausto e todo mundo foi se adaptando. Enfrentamos ansiedade de pacientes e funcionários. O número de pacientes com sintomas depressivos também aumentou bastante. Muitas vezes cuidamos da parte física e esquecemos o emocional e com a pandemia esses sintomas vieram muito fortes. Em alguns casos, com autorização médica, trouxemos um familiar para visitar o paciente, porque, às vezes, por telefone a família entende uma coisa e a realidade é outra”, conta.
“Muitas vezes nós precisamos nos segurar um no outro”
Muitas ações são realizadas para levar alento aos pacientes, entre eles decoração dos quartos com fotos e balões e comemoração de aniversários nas janelas, tudo organizado pelos profissionais. “Nos floresceu o sentimento de compaixão, de cuidado com o próximo. Tanto o técnico quanto o sentimental. Aquele paciente, aquele familiar que estava precisando. Aquelas ligações que podem ser boas ou ruins. Tudo isso, tanto com o paciente e os familiares, quanto com os colegas, porque muitas vezes nós precisamos nos segurar um no outro. Em muitas vezes não foi fácil. O paciente chegava conversando e a gente tinha que devolver ele (para a família) de outra maneira que a gente não queria. Então, tudo isso nos fez ver o quanto somos importantes e como aquele próximo também é importante. Todos vão levar isso para o resto da vida”, diz a fisioterapeuta, Luana Bortoluzzi Pacheco Rocha.
Luana trabalha no hospital há seis anos e durante a pandemia atua na UTI, diretamente com os pacientes. “Sei como era antes e como está sendo. Antes para ter paciente com esta situação era um ou outro e agora fizemos no nosso dia a dia tanto com pacientes ativos quanto sedados e tudo isso nos exigiu bastante conhecimento técnico, algumas coisas a gente teve que ir atrás porque é tudo muito novo, como tratar este tipo de paciente”, destaca.
O cansaço é grande e se esconde, muitas vezes, atrás da máscara, mas a profissional é convicta ao afirmar de onde vem a força para continuar o trabalho. “O incentivo vem da melhora do paciente. Muitos estão fazendo horas extras para tentar compensar tudo isso e suprir as necessidades. Estamos conseguindo fazer, suprir todas as necessidades. Têm as vitórias e as derrotas, mas dá para seguir em frente”, observa.
“Recebemos o paciente bem, chega no dia seguinte já está intubado e esta piora é angustiante”
A enfermeira, coordenadora do setor de enfermagem da UTI, Tamiris Masieiro da Luz, não estava no hospital no primeiro pico da gripe, em julho e agosto do ano passado, mas vive o dia a dia desta piora registrada desde novembro. “Em setembro os casos diminuíram, em novembro tivemos que reabrir todas as UTIs, e nesta época muitos profissionais haviam sido desligados. Alguns cansados, com atestado, então tivemos que remanejar equipes do setor de internação, já que as cirurgias foram canceladas, para suprir os desfalques nas UTIs. Contamos com profissionais para fazer horas remuneradas e o hospital contribuiu com o pagamento, assim eles fizeram plantões de 24 horas e ajudaram muito”, fala.
Um dos desafios, aponta ela, é não ter a certeza se verá o profissional entrando pela porta do hospital no dia seguinte. “A gente sabe que qualquer sintoma gripal já é identificado como suspeita de Covid-19 e o profissional é afastado até sair o resultado do teste. Mesmo que a gente remaneje de outra equipe, cada um tem a sua rotina. Para mim coordenadora esta é a maior dificuldade: tu não poder contar com uma equipe devido esta situação, todos somos seres humanos e podemos ficar doentes. Na questão emocional também, temos muitas pessoas abaladas, profissionais e pessoalmente. Já tivemos pedidos de rescisão de contrato devido ao cansaço físico e emocional. Recebemos o paciente bem, conversando, chega no dia seguinte já está intubado e esta piora é angustiante, e daí temos que dar a notícia para a família”, cita.
“As pessoas que a gente perdeu, temos consciência que fizemos tudo e temos certeza que as famílias sabem disso”
A coordenadora do setor de enfermagem das áreas clínicas, Liliane Nart Grassi, diz que os profissionais do hospital já precisaram atender famílias inteiras. “Já tivemos famílias internadas. Marido, esposa, filho, avó, todos no mesmo momento. Tudo que a família vivencia, a gente também vivencia, porque a gente também tem família. Se colocar no lugar do outro. Foi uma loucura, mas uma loucura de aprendizado. Estamos cansados, mas é um cansaço com gratidão porque a gente venceu. A gente acha que vamos passar por tudo isso de novo, mas iremos vencer de novo. Perdemos pessoas? Perdemos várias pessoas, mas também salvamos várias. E as pessoas que a gente perdeu, temos consciência que fizemos tudo e temos certeza que as famílias sabem disso”, pontua.