A reportagem também está disponível na íntegra em áudio. Ouça:
Edição de áudio de Marcos D'Ávila e Leonardo Cardoso.
Aprender. Partilhar. Se sentir parte. A inclusão não é uma via de mão única e precisa, sobretudo, de olhares atentos e de união. O respeito às diferenças é uma obrigação, em todos os espaços, sejam públicos ou privados. Na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), o Setor de Apoio Multifuncional de Aprendizagem (Sama) garante aos estudantes com deficiência, acesso ao ensino e a recursos que geram possibilidades ao dia a dia acadêmico.
Os profissionais do Sama atuam em todas as pontas, desde o amparo às dificuldades enfrentadas pelos alunos, à capacitação dos gestores e profissionais que atuam na instituição. Isso porque, as atividades simples do cotidiano podem ser verdadeiros obstáculos para os acadêmicos que lidam com alguma deficiência, seja física, intelectual, auditiva ou visual.
Prova deste movimento de superação e desafios, é a estudante da 8º fase do curso de Direito da Unesc, Renata Martins. Aos 35 anos, a aluna, que possui deficiência visual monocular, passou por momentos difíceis ao longo da sua caminhada acadêmica e, por diversas vezes, pensou em desistir dos estudos. Graças à mobilização de pessoas, sobretudo as que lutam por essa causa, a sua realidade mudou.
“Entrei nesta caminhada da Unesc há quase dez anos, devido à baixa autoestima e desânimo em trancar a faculdade. Eu passei por todos esses processos antes de encontrar o Sama”, relembra a estudante. Há um ano, Renata ingressou no Setor de Apoio Multifuncional de Aprendizagem, após indicação do ex-coordenador do curso de Direito da Unesc, João Carlos.
“Eu procurei o Sama dentro da universidade e me inscrevi para ter atendimento psicológico com a Elisabete [profissional]. Ela foi ajudando a aumentar a minha autoestima e me incentivando a não trancar a faculdade, além de lidar com problemas externos da vida pessoal, da sociedade e da acessibilidade dentro da sala de aula”, pontua a estudante de Direito.
“Depois que entrei no Sama, não tive mais vontade de desistir”
“Depois que entrei no Sama, não tive mais vontade de desistir. Só dei continuidade e não reprovei em mais nenhuma disciplina”, comenta, orgulhosa, a estudante. “Eu me sinto vitoriosa, porque eu estou ultrapassando cada etapa e é uma superação para mim ter aceitação da minha deficiência”, enfatiza. Renata, que está na reta final dos estudos, admite que percebeu a mudança na sua vida após ingressar no Setor de Aprendizagem.
Eu me sinto vitoriosa, porque eu estou ultrapassando cada etapa e é uma superação para mim ter aceitação da minha deficiência", comenta Renata Martins, estudante do curso de Direito da Unesc.
“A nossa vida mental e profissional muda bastante, em todos os sentidos. A gente tem outra visão”, frisa a estudante. Renata ainda comenta que o acompanhamento com a psicóloga do Sama possibilitou a descoberta da sua deficiência. “Eu descobri tarde. Sempre tive falta de visão, desde o Ensino Fundamental, e não foi trabalhado na escola”, comenta.
Para os demais alunos, em especial os que possuem deficiência, Renata aconselha: “Se você tem um sonho, nunca desista. E procure todos os recursos possíveis para realizar. O Sama me ajudou nisso. Agora, está chegando na reta final”, finaliza a estudante.
O Sama me ajudou nisso. Agora, está chegando na reta final", encoraja Renata Martins, estudante do curso de Direito da Unesc.
Sama surge a partir da Política de Educação Inclusiva
O Setor de Apoio Multifuncional de Aprendizagem surgiu em 2014 na Unesc. Segundo a coordenadora do projeto, Zélia Medeiros Silveira, à época, o programa foi instituído através da Política de Educação Inclusiva, que exigia das instituições que garantissem acesso aos estudos a todos os alunos, sobretudo, os que têm deficiências.
“O Sama surge, então, a partir de um aparato legal, mas vai se constituindo por uma política da universidade. Ele se consolidou como uma opção da Unesc em ser uma instituição comunitária e inclusiva”, acrescenta Zélia.
Apesar desse tipo de iniciativa não ser exclusiva da Unesc, as instituições federais, por exemplo, não dispõem de projetos como o Sama. “Algumas universidades, principalmente as comunitárias, têm serviços de atendimento à pessoa com deficiência. Não são todas, mas há trabalhos”, pontua a coordenadora do setor.
Dentro do Sama, há três tipos de atendimento ofertados aos alunos, como detalha Zélia. “O psicológico, que recebe semanalmente os estudantes com alguma dificuldade no seu processo de aprendizagem por conflitos emocionais; além desse, o psicopedagógico, que é específico aos alunos com deficiência ou com transtornos”, frisa.
Destas duas linhas de atendimento, cerca de 30 estudantes participam de cada uma. Há, também, um terceiro serviço. “Temos a interpretação de libras para os acadêmicos surdos, que são atendidos em salas de aula, com um intérprete à disposição e há a tradução dos eventos e vídeos institucionais, além das aulas EAD”, ressalta Zélia.
Através do Sama, também há a orientação dos professores que trabalham com os alunos que possuem deficiência ou transtorno; dos coordenadores dos cursos; gestores e demais funcionários da instituição em como agir no processo de atendimento e acolhimento desses estudantes na Unesc.
“A inclusão não pode ser uma via de mão única”
Todas as pontas do processo de aceitação e acolhimento são atendidas através do Sama. “A gente entende que a inclusão não pode ser uma via de mão única, o foco não pode estar apenas no estudante, o professor também vai ter que modificar a sua forma de atuar, a metodologia, a proposta pedagógica, o plano de ensino e o seu currículo para atender às necessidades dos alunos”, pontua Zélia.
A gente entende que a inclusão não pode ser uma via de mão única, o foco não pode estar apenas no estudante, o professor também vai ter que modificar a sua forma de atuar, a metodologia, a proposta pedagógica, o plano de ensino e o seu currículo para atender às necessidades dos alunos”, explica Zélia Medeiros Silveira, coordenadora do Sama.
Para Zélia, a inclusão é um caminho a ser percorrido. “Nós não podemos dizer que as universidades e escolas já são inclusivas, até porque, nós vivemos em uma sociedade que é excludente. Então, será sempre algo a ser aperfeiçoado, através da melhora dos nossos processos e qualificação profissional”, acrescenta a coordenadora do Sama.
As mudanças colocadas em prática vão além das estruturas física e pedagógica aplicadas na instituição para contribuir com o desenvolvimento dos acadêmicos. "A inclusão necessita que nós mudemos as nossas atitudes com relação à pessoa com deficiência e a nossa forma de ver. Embora a gente já tenha percorrido um grande caminho, nós apenas estamos no início desse processo”, acrescenta Zélia.
A inclusão necessita que nós mudemos as nossas atitudes com relação à pessoa com deficiência e a nossa forma de ver. Embora a gente já tenha percorrido um grande caminho, nós apenas estamos no início desse processo”, enfatiza Zélia Medeiros Silveira, coordenadora do Sama.
“A cada semestre, temos feito avaliação institucional com os alunos em relação ao trabalho do Sama. O que eles nos revelam é que os processos de ensino e aprendizagem em si melhoraram e qualificaram. Como a gente atende alunos com diversas demandas, sejam emocionais, problemas de aprendizagem ou deficiências, com o nosso auxílio para construir a acessibilidade, eles têm nos informado de quem tem melhorado, que têm aprovado em disciplinas que até então não aprovariam, que se sentem acolhidos nas salas de aula e empoderados com relação a sua própria identidade”, afirma a coordenadora.
“Hoje, eles conseguem enxergar a sua deficiência como uma possibilidade”
O apoio restrito aos estudantes traz confiança, estímulo e, além disso, impulsiona o protagonismo dos alunos dentro da instituição. “Alguns nos revelam que antes de frequentar o Sama, não reconheciam a sua deficiência, porque antes entendiam como um defeito, um problema, uma lacuna, uma falta. Hoje, eles conseguem enxergar a sua deficiência como uma possibilidade de ser diferente na sua plenitude”, enfatiza.
Alguns nos revelam que antes de frequentar o Sama, não reconheciam a sua deficiência, porque antes entendiam como um defeito, um problema, uma lacuna, uma falta. Hoje, eles conseguem enxergar a sua deficiência como uma possibilidade de ser diferente na sua plenitude”, conta Zélia Medeiros Silveira, coordenadora do Sama.
Todos que fazem parte do Sama têm um interesse em comum: oportunizar acesso à educação para pessoas com deficiência e gerar oportunidades. “Eu costumo dizer que viemos de coração aberto para fazer o melhor trabalho possível dentro das condições que nos são dadas. Enquanto a gente viver em uma sociedade que ainda é excludente , discrimina e vê como falta e problema, nós vamos ter um grande caminho”, pontua Zélia.
Conhecimento acessível para todos
Um serviço que nem sempre é associado ao ambiente acadêmico, mas que possui uma gigantesca importância no aprendizado de muitos alunos. O Sama oferece interpretação de aulas para estudantes com deficiência auditiva, por meio da Língua Brasileira de Sinais.
Neste contexto, vale destacar que, há pelo menos 20 anos, a Libras é uma forma oficial de expressão no Brasil. E, levando a Língua para dentro da sala de aula e de outros espaços da universidade, é possível derrubar barreiras na comunicação e oportunizar o conhecimento.
É acreditando nisso que Suzana Nunes decidiu iniciar os estudos nesta área. “Em 2016, eu ingressei na graduação e já na primeira fase tive a disciplina de Libras. O professor organizou um grupo de estudos na Unesc e ali, então, foi onde eu aprofundei os meus conhecimentos. Participei de um grupo de pesquisa, depois fiz curso de extensão e uma pós-graduação na área”, conta. A profissional também é formada em Matemática e Pedagogia pela universidade.
Assim, o trabalho de Suzana e de outros intérpretes tornam o conhecimento acessível para todos e permite que os estudantes desenvolvam suas potencialidades. “Eu acredito que seja para tornar uma sociedade mais inclusiva e oportunizar a pessoa com deficiência, neste caso, a surdez, a ter acesso ao ensino superior”, ressalta.
Eu acredito que seja para tornar uma sociedade mais inclusiva e oportunizar a pessoa com deficiência, neste caso, a surdez, a ter acesso ao ensino superior”, comenta Suzana Nunes, intérprete de Libras.
Além das ações desenvolvidas em sala de aula, os profissionais da Língua de Sinais também realizam a tradução e interpretação de produções audiovisuais e eventos institucionais. O Sama também promove ações de política de inclusão, como cursos de capacitação em Libras ofertados aos profissionais da instituição.
O debate sobre a inclusão é da sociedade inteira
Mais do que saber que a inclusão existe, se faz necessário levar o assunto para todas as esferas da sociedade. Nesse sentido, a psicologia também tem muito a contribuir com esse processo. Especialmente, porque o trabalho realizado pelos profissionais desta área busca promover a autonomia e independência.
Uma das pessoas que promove o acolhimento na universidade é Elisabete Gonçalves Barbosa, formada em Psicologia pela Unesc desde 2011. Há quatro anos, a profissional atua com atendimentos psicológicos no Sama.
“O que a gente busca no atendimento aos alunos com deficiência, desde aqueles que atendemos semanalmente, seja aqueles que só orientamos, é que ele alcance a sua independência, a sua autonomia e a sua formação profissional. Para que o aluno saia da universidade apto a exercer a sua profissão. Isso, com certeza, vai impactar lá na sociedade porque vai sair dali um profissional formado capaz de exercer suas atividades, seja qual for a área que ele escolher”, enfatiza.
O que a gente busca no atendimento aos alunos com deficiência, desde aqueles que atendemos semanalmente, seja aqueles que só orientamos, é que ele alcance a sua independência, a sua autonomia e a sua formação profissional", detalha Elisabete Gonçalves Barbosa, psicóloga do Sama.
A inclusão tem tudo a ver com transformar a vida das pessoas e, por isso, esse assunto sempre despertou o interesse de Elisabete. “É algo que eu considero fundamental falar. Quanto mais a gente fala sobre, mais as coisas vão acontecendo. As pessoas se conscientizam do que é de fato, a inclusão. Porque, muitas vezes, é um tabu falar sobre deficiência”, enfatiza. “É algo que está dentro de mim. Eu falo daquilo que eu acredito. O Sama e todos os profissionais que estão ali acreditam na inclusão”, completa a psicóloga.
Derrubar barreiras para criar oportunidades
É indispensável ter consciência que ainda existem muitos obstáculos no caminho da inclusão, mas, são possíveis de serem superados. Uma dessas barreiras são as atitudinais. Aquelas ações do dia a dia, intencionais ou não, que dificultam o acesso das pessoas com deficiência a coisas básicas do cotidiano.
“A acessibilidade atitudinal é como as pessoas da sociedade como um todo enxergam e tratam as pessoas com deficiência, como elas lidam com esse processo de inclusão”, explica. Na prática, é construir uma calçada adequada para todo mundo - não somente para aqueles com deficiência. É ter o entendimento de que não se deve estacionar em cima da faixa, nem obstruir as rampas de acesso.
A acessibilidade atitudinal é como as pessoas da sociedade como um todo enxergam e tratam as pessoas com deficiência, como elas lidam com esse processo de inclusão”, explica Elisabete Gonçalves Barbosa, psicóloga do Sama.
Em resumo, são atitudes simples, mas frequentemente esquecidas. “Quando existe acessibilidade atitudinal elas vão contratar as pessoas com deficiência para trabalhar nas suas empresas. Vão tratar essa pessoa com deficiência como qualquer outro funcionário, vão enxergá-lo com potencial de alguém que exerce uma função real na empresa e não só para preencher uma cota”, comenta Elisabete.
Ao longo dos anos, a inclusão se tornou um tema cada vez mais presente na sociedade, especialmente, por conta de ações afirmativas dentro das universidades, como na Unesc. “Hoje, a gente já se depara com mais pessoas com consciência, mas ainda há muito o que ser feito neste sentido”, conclui.