Deixa casa e consultório, bengala de junco ao ombro, chapéu Borsalino de grande aba larga e gravatinha branca de tope, habitualmente usada. E lá se ia, bamboleando o corpo grandalhão, gingar de marinheiro, olhos semicerrados, pequenos, vivos, perdidos muitas vezes em elocubrações. César Avila já estava pronto e lá se ia, rua 15 de novembro acima, rumo ao hospital, o velho convento de pedras. Seis e meia da manhã e já se preparavam na sala pequena, onde o sol ensaiava entrar pela janela.
Seu escovar era um dilúvio de espuma e água. Antes, pince nez a cavaleiro no nariz, tesoura em punho, cortava as próprias unhas e examinava as de seus assistentes. Está ali com as calças arregaçadas até o meio das canelas. A lavagem das mãos durava os longos 15 minutos clássicos.
Sartori sempre cumpriu escrupulosamente, com rigor fanático os detalhes mínimos da técnica. Era intransigentemente exigente em relação à lavagem das mãos e à desinfecção do campo operatório, a assepsia e a antissepsia. Ao executar uma cesariana seu jeito desengonçado se transfigura na cirurgia. A cabeça irradia autoridade e aquelas mãos que pareciam pesadas, adejam leves, manejando o bisturi. É um artista operando. A calma que vem da segurança em si. O entusiasmo jovem não diminuiu, mesmo tendo Sartori emagrecido pela velhice, a face sulcada de rugas. Um homem consciente da responsabilidade do ato cirúrgico.
A sala de operações era um Templo onde se ciciava. Mas, se algo não corresse bem, pobre do assistente ou da enfermeira.
Deus romano tonitroante acordava numa tempestade de palavras e palavrões, mistura de italiano e português, blasfemando em duas ou mais línguas...
Terminado o ato cirúrgico, passava a tempestade, era o primeiro a cumprimentar a todos e a pedir críticas. Jamais atingiu a autossuficiência e, por isso, sempre foi moço. Tinha a tortura da perfeição. Na véspera relera a familiar anatomia topográfica daquela operação, tão sua conhecida e tantas vezes praticada. Hábil escultor, sabia que estava esculpindo o frágil material que é o corpo humano, sempre um grande risco. Era, a um tempo, mestre-parteiro, grande clínico, grande cirurgião, grande coração.
César Sartori e César Ávila voltam para casa, sempre conversando. E, nessa volta param cinco a seis vezes. Parados, ele bate no ombro do interlocutor para sublinhar o raciocínio. Parados alguns minutos várias vezes no calor da conversa, a volta do hospital dura, assim, perto de uma hora.
Para, bate no ombro e diz: -“Hóstia! Veja a inteligência do Povo. Puseram apelido de bicho numa porção de gente. Quando sonham com um desses, jogam no bicho correspondente. Sturgo é o cachorro. Caetano é o pavão. E eu, diga-me: com que bicho sou parecido? Olha! Sou o urso. O urso do polo. E sou parecido mesmo”.
Na casa almoçam a imbatível culinária, cardápio de dois mundos, responsável por sua obesidade. Macarrão de vários tipos. Salada de feijão branco e alho. Fumegantes assados. Paca, perdiz, polenta. Tudo regado a vinho.
Com gesto autoritário, dedo em riste, exigia repetissem várias vezes a taça de vinho ou o copo de cerveja: “Semel in anno insanire potes.” (Uma vez por ano podes ficar maluco, diziam os latinos). Beba “que te fa bene”. E assim, várias vezes por mês seguiam o preceito anual dos latinos. Café, vermute. Depois dormia religiosamente a sesta. Dona Senhorinha e Matilde preparavam-lhe o almoço e cuidavam de seu sono reparador pós-prandial.
O Consultório
Três degraus. Corredor estreito. Na porta o horário de anúncio de jornal: Consultório Dr. César Sartori, médico, operador e parteiro. Entrava-se por uma porta ao lado. O consultório de Sartori era peça pequena e modesta em sua residência particular. Um esqueleto humano completo a um canto, pendurado na parede. Dois grandes armários com livros.
Mesas pequenas lembravam um museu. Havia, entre outras coisas, queixada de piranha do interior do Mato Grosso, minérios de ouro colhidos por suas próprias mãos nas galerias de Morro Velho, arcos e flexas de muitas tribos, dois crânios de indígenas e outros, de animais. Um grande couro de jibóia contornava a peça, paralelo ao teto. Antigos recortes de jornais e de revistas nas janelas de vidro dos armários: Stalin, a Passionária, Plutarco, Luiz Carlos Prestes, fotos de crianças, colegas, amigos.
E livros: bíblias e livros comunistas ao lado de manuais de cirurgia e de obras de Biologia. Tudo lido. Tudo anotado. Em outra peça, seu arquivo. Eram de contas que quase nunca mandava e ficavam ali à inútil espera de pagamento com tudo em ordem, dia e hora do atendimento. Algumas pitorescas. Esquecera o primeiro nome do paciente e especificara como lembrete:”Santos (o sem orelha) 10 injeções de 914 semanalmente de 2.6.1925 a 4 de agosto".
Ali examina doentes com cuidado e técnica, aflorando o diagnóstico acima dos sintomas, com aquele sexto sentido que dá ao clínico a intuição da doença, qualidade nele hipertrofiada. Depois das consultas, estuda, escreve. À noitinha sai e visita amigos; ao pé da lareira transborda o formidável causeur. Penosamente, surge, caleidoscopicamente, suas aventuras pelos caminhos do mundo.
Profissão de fé
Orador de mão cheia, assim sintetizou num discurso de saudação, sua vinda a Lages:
“Deixa que tudo isso te diga, um médico do interior, que chega aqui, vindo de Urussanga, consumindo 8 dias a cavalo, 41 anos atrás. Médico que cobria distâncias imensas em transportes muitas vezes incômodos, sem horas de descanso, escalando montes em noites de temporal, enfrentando as mais duras intempéries pelas caladas da noite, sem repouso para o físico e sem tréguas para o espírito. Transportado no lombo das mulas, ao frio, ao vento, à neve. Esperando na noite negra, que baixasse a água do rio para poder vadeá-lo. Dormindo ao relento ou no catre duro, tendo travesseiro como única roupa, onde, uma vez, estava escrito:” Duma bem e viva a República.” O dramático, o trágico, o cômico, tudo misturado. Precisava ser enciclopédia viva, um improvisador, médico e enfermeiro, parteiro e dentista; muita vez batizei crianças agonizantes. Fiz minha primeira operação cesárea em Lages, no quarto da paciente, assistido por Hermelino Ribeiro e Antônio Amorim".
Antifascista
Levanta-se num banquete pedindo a palavra para condenar a invasão da Abissínia pelas tropas de Mussolini. Na guerra de 14 vai à Itália. Ainda não naturalizado brasileiro dirige parte de um hospital e não aceita remuneração ou posto de oficial. Sartori levava a extremos sua ética profissional. Por princípio, adversário de qualquer guerra, não queria tirar proveito daquela.
Sofreu o que a Itália sofria com o domínio de Mussolini. Recalcou suas tendências políticas, denunciado que foi por colega cônsul italiano, como antifascista. Tinha familiares na Itália e suas atitudes, no Brasil, podiam vir a prejudicá-los, comprometê-los. Recebe carta de um parente, catedrático em Milão, o professor Colosi, enviada clandestinamente da Suiça, em pleno período fascista: “...Caríssimo tio, não sublinhe nada em suas cartas. Não escreva a palavra LIBERDADE. Não fale nem na Democracia brasileira. Evite tudo isso. Poderemos sofrer muito!” Um a um seus parentes vão morrendo.