Pois é, Lessa, deste modo passaram-se 64 anos. Em 1960, quando fui convidado a trabalhar em Criciúma, quase nenhum forasteiro aceitava exercer a profissão médica na cidade. Um pó de carvão espesso pairava sobre as coisas e enegrecia as gentes. Otorrino que trouxe a família (mulher mais lactente), debandaram todos, apavorados, quando o bebê passou a ter crises de asma. Foram refugiar-se em Vacaria no RS, onde ainda devem estar: o mais longe possível dos eflúvios da terra carvoeira catarinense.
Eu era solteiro o que facilitava as coisas. Ou dificultava? Já imaginou médico solteiro trazendo a noiva para conhecer sua futura residência e perceber subitamente ser ela intolerante ao odor aurífero do carvão mineral? Deve ter acontecido algumas vezes na historiologia médica da cidade, o que explica uma certa tardança em substituir médicos que nos deixavam. E não foram poucos. Só no Hospital Santa Catarina, TODA UMA GERAÇÃO MÉDICA NOS DEIXOU NOS ANOS 60,TROCANDO-NOS POR OUTRAS PLAGAS. Foram-se o radiologista Lourenço Cianci Filho, Carlos Deslandes, o cirurgião Anohar Zacarias (sobrinho de Manif), Naby Zacarias (cardiologista e irmão de Manif), o pediatra Luiz Eduardo dos Santos, Antônio Osvaldo Teixeira de Freitas (o Bola), o oftalmologista Ruy César Esmeraldino Orlandi (trazido pelo advogado Hélcio Góes, ambos procurando-me para as devidas apresentações em minha residência. Ruy teve consultório montado e de maneira surpreendente nas lonjuras onde se encontrava no Hospital Santa Catarina. Radicou-se mais adiante em Tubarão, onde faleceu neste ano da graça de 2024). E tem a Maria Formentim Fernandes, inigualável enfermeira do XIII de Maio.
Seria o legado “da terra árida e da água contaminada” no dizer de um de seus mais ilustres prefeitos, o arquiteto, funcionário público e político Altair Guidi?
2. CHEGAM NOVOS MÉDICOS, ALGUNS PARA O SANTA CATARINA EM CRICIÚMA
Em 1962 graduam-se no curso de Medicina da Universidade Federal do Paraná, entre outros, Anohar Zacharias, Antônio Osvaldo Teixeira de Freitas (o Bola), Luiz Eduardo dos Santos e Arary Cardozo Bittencourt. Os três primeiros médicos viriam para o recém-criado Hospital Santa Catarina de Criciúma, Arary voltaria para Tubarão, sua terra natal, dando início a uma carreira médica brilhante como Pediatra. Ele é autor de livro autobiográfico de real importância, especialmente para aqueles que estudam a ganância dos outros, desvio psicológico (neste caso alheio), e que tanto prejudicou a carreira médica de Arary.
Nem vou citar outros nomes formados nesta Turma, como David Saute, que em 1954 apanhou em Carazinho, alta madrugada, o mesmo trem da Viação Férrea do RS que eu apanhara em Santa Maria, ambos rumando para Curitiba, onde iríamos prestar exame vestibular para a Faculdade de Medicina. Eu seria aprovado e iria formar-me em 1959, turma da Zilda Arns, Waldir Mendes Arcoverde, Padre José Raul Matte. Já David Saute ingressaria alguns anos depois, como já ficou dito, formando-se em 1962.
Anohar dedicava-se à cirurgia-geral e, poucos anos depois, 1965-1966, deixaria Criciúma para dedicar-se à cirurgia cardiovascular em Tolledo, Ohio, EUA. Casou-se por lá com americana legítima, do qual casamento resultaram quatro filhos. Não há vácuos em Medicina e logo após a saída de Anohar, chega um novo cirurgião para a cidade, o Dr. Portiuncola Caesar Augustus Gorini Augustus Gorini, formado em Santa Maria, RS, em 1964. Chega para trabalhar em 1965.
Antônio Osvaldo, mais conhecido como Bola, também pouco trabalhou entre nós, voltando logo-logo a Curitiba para a prática de clínica-geral. Faleceu em 13.03.2018 na capital das Araucárias, terça-feira, aos 80 anos de idade.
Luiz Eduardo faleceu faz muitos anos. Participou da equipe de Alceni Ângelo Guerra, médico paranaense (mas nascido em Soledade -RS), que assumiu o Ministério da Saúde no (des)governo Collor de Mello, de quem Deus nos livre e guarde. Parece que Luiz Eduardo não suportou o fardo que representou assessorar o ministro, demitido em favor de Adib Jatene. Luiz Eduardo casou com Santina, moça aqui de Criciúma, que se conheceram no Hospital Santa Catarina, onde ela exercia enfermagem. Portiuncola, filho do célebre médico Dino Gaetano Fermo Gorini, viria a casar-se com Onei Chaucooski, também enfermeira do mesmo Hospital Santa Catarina.
O Pediatra Arary dedicou parte de seu tempo a escrever e publicar livros. Neles, fala da cidade de Tubarão, sua história, seus médicos e sua gente. Estas publicações mereceram os mais rasgados elogios de autores pátrios, são sucesso de crítica e de público, sendo de justiça ressaltar-se O MENINO DE OFICINAS, no qual o destaque é sua infância sofrida e a formação médica em Curitiba.
Luiz Eduardo dos Santos era profissional inteligente, dotado de rara sensibilidade e apreciável grau de cultura. Dedilhava o piano em contadas ocasiões e praticava futebol apesar de exibir pronunciada protuberância da circunferência abdominal.
Em 1964 estoura a Revolução Redentora promovida por militares brasileiros. Criciúma foi especialmente visada pelo movimento militar. Logo o exército estava na cidade e muita gente foi presa, acusada de subversão. Para minha surpresa comandava a tropa o coronel Newton Machado que, na Curitiba de 1954-1955, comandara o CPOR quando fui chamado para servir à pátria.
Luiz Eduardo apresentou-se na secretaria do HSC mal chegara à cidade. Havia necessidade de preencher certos papéis, alguns convênios, regularizar a situação médica; essas coisas. Na secretaria hospitalar trabalhava a sra. Marlene Scariot, mas coube ao sr. Morais atender a Luiz Eduardo. Moraes era autoritário, vistosa calva luzidia. Aliás, ele explicava que há dois fatores diferentes que determinam se um homem tem uma cabeça calva brilhante. Um é a suavidade do couro cabeludo. Aqueles que são naturalmente carecas tendem a conseguir o aspecto brilhante muito mais facilmente do que aqueles que raspam a cabeça.
Moraes pergunta se Luiz Eduardo tem alguma habilidade especial, algum predicado, especialização médica ou não que possa ser aproveitada no hospital. Luiz Eduardo fala de eleições na Universidade que o tinham elevado a duas ou três vice-presidências de organismos médicos.
Moraes, olhando por cima dos óculos, informa:
- Já temos 12 vice-presidentes!
- Olha, não sou nem um pouco supersticioso!
3. AS PRISÕES NA CRICIÚMA DE 1964
Manif foi preso, Dauro Martinhago foi preso, Antonio Cologni, Addo Faraco, Jorge Feliciano, todos presos.
A chefia do serviço médico do IAPETC local, depois INAMPS, e mais depois SUS, foi demitida sendo nomeado em seu lugar o médico Ângelo Lacombe, nascido em Cruz Alta, RS e formado em Medicina na URGS em 1937. Era médico em Criciuma desde 1944 e aqui viveu até aposentar-se em 1972 quando transfere residência para Florianópolis onde vem a falecer em 19.04.1991.
Lacombe, em Criciúma, aos poucos se desatualiza, pouco frequenta o meio médico, fica superado como profissional. Sua atuação resume-se em ser médico-chefe burocrata do Posto de Saúde, médico do ambulatório do IAPETC, membro da Junta Médica para concessão de CNH. Na chefia do IAPETC, Lacombe recebe orientação vinda de Brasília para negar todas as guias para realização de cirurgias eletivas, antes até estimuladas. Em Criciúma, por conta de autorização de chefias anteriores, havia uma espécie de Medicina social. Mineiros e seus familiares eram internados para tratamentos clínicos porque não dispunham de recursos que permitissem adquirir medicamentos de que necessitavam. Na cidade havia cardiologistas que tinham número elevado de leitos cativos no hospital, 20 para ser exato permanentemente ocupados para trat amento de hipertensão arterial e outras mazelas, perfeitamente passíveis de tratamento em domicílio. Sofria agora a população realmente necessitada de internação por conta da orientação anterior. Tudo estava sendo coibido.
Luiz Eduardo sofria para internar crianças, cujas baixas eram sistematicamente negadas. Certo dia, na agência local do INAMPS, LACOMBE brandia uma guia de internação para pediatria e solicitada por Luiz Eduardo. Exibia o documento, erguido bem alto com uma das mãos enquanto dizia:
- Essa sim é solicitação criteriosa! Ela está dentro do que a Revolução está a exigir!
Pedimos para olhar: Luiz Eduardo diante do absurdo de ver negada sua pedida para internar criança desidratada, escrevera em diagnóstico provisório: Síndrome Paradoxal de Flandres, não só aceita, como recomendada!
A síndrome nunca existiu.
Lacombe era dos quadros partidários da UDN, oposição ao PTB e outras siglas de esquerda. Oposição a Getúlio Vargas de quem Ângelo Lacombe e o pai foram defensores acérrimos em 1930.
4. O CIENTIFICISMO
Pois vim, fui aceito pela população e pelo cheiro do carvão. Casei-me com moça de São Gabriel, do RS, mas vinda de Porto Alegre com ligeira escala em Cacequi. Vieram os filhos, todos os quatro criados e trabalhando em atividade que eles mesmo escolheram, sem qualquer interferência dos pais. Nenhum deles é médico; Lúcio talvez o mais perto disso.
Como vinha dizendo eis-me aqui no limiar do marco final de minhas atividades médicas, pelo menos aqui em Criciúma. Dado a atividades que privilegiam a ciência ou o cientificismo, encontrei aqui no sul catarinense muitos adeptos deste modo de pensar. Grande expoente desta corrente em Criciúma foi Manif Zacarias, médico, maçom, comunista, escritor, radialista, jornalista, político e filantropo.
Houve outros mais como Max Finster. Já Madre Teófora e Madre Hilda eram meio cá meio lá; privilegiavam a religião. Almir Fernandes (policial civil aposentado e presidente voluntário da Cruz Vermelha local), foi fundamental para o incremento do Banco de Olhos de Criciúma e para a realização de transplantes de córnea em nossa região.
Lessa -, Gilberto João de Oliveira, da Fundação Cultural de Criciúma, antes disso da CECRISA, que não sabia o que era cientificismo, foi um de seus maiores cultores e praticante. Também adepto do cientificismo foi o garoto, aluno do São Bento, que viu meu celular cair na calçada frente à Caixa econômica e devolveu-o sem pestanejar.
E o meu amigo Dom Anselmo Pietrulla?
Alguns médicos fizeram história no sul-catarinense. Em especial PAULO CARNEIRO, MANIF ZACARIAS, DAVID LUIZ BOIANOvSKI, OTTO FEUERSCHUTTE, o político EDUARDO PINHO MOREIRA, SÉRGIO HERTEL ALICE & ALBINO JOSÉ DE SOUZA FILHO & VALDIR DE LUCA, estes três últimos pelos trabalhos sobre Pneumoconiose humana, as lesões fatais pulmonares produzidas na exploração subterrânea do carvão mineral.
Paulo Carneiro, entrevistado pelo rádio sobre a morte, declarou:
- Sou radicalmente contra!
Esbarra em Gaguinho, conhecido barbeiro da Laguna, na porta de afamado café, em Florianópolis. O apelido diz tudo sobre a maneira pela qual se comunicava o ilustre personagem. Paulo pergunta a que vinha ele:
- P-Pois, do-doutor Paulo, vim prum cu-curso de ga-gagueira...
- Mas, prá que homem de Deus? Se você já gagueja tão bem!
Paulo Carneiro, mineiro mas que estudou Medicina no Rio, menino pobre que teve o curso subsidiado por parenta rica, é nome de quase tudo na Laguna. Existe a Sociedade Esportiva Paulo Carneiro, há um busto (erigido em vida) ali na frente do Cine Mussi, é nome de rua, de praça, de escola municipal e é até nome de time de futebol.
ATÉ MAIS!