A primeira, Santa Maria, RS, idos de 40
Ao longo de muitas décadas de minha vida enfrentei e derrotei algumas epidemias. Algumas delas passaram insuspeitas e nem sequer contabilizadas foram.
A primeira delas ocorreu no início dos anos 40 em minha cidade natal, Santa Maria, no RS. Residi nesta cidade para concluir o curso científico no Colégio Marista, 1953.
Até onde a memória alcança, minhas lembranças dos meus dois, três anos de idade incluem um gordo avô materno, açougueiro de profissão, precocemente falecido. Bigodes fartos, cabelo escasso, corrente do relógio cruzando o peito largo, presenteou-me com uma nota novinha de 5 mil réis. Na opinião insuspeita de minha mãe eu era a criança mais linda do universo conhecido. Gordinho, risonho, cabelos crespos e louros até os ombros, as poucas fotos que restaram da época são lisonjeiras.
Mais que depressa, naquela manhã de vento norte frio em Santa Maria, corri para a cozinha e seu calor de fogão a lenha chiando e estalando, para fazer um cigarrinho. Como aqueles cigarros de palha que nosso vizinho enrolava e lambia. O tenente Adonaldo, da Travessa Dona Luiza, esquecida via urbana santa-mariense, fundos do colégio Sant’Ana, sem calçada e piso de rolamento sem calçamento. Foram duas ou três baforadas se tanto. Dizem que fiquei enjoado o resto do dia ou da semana, não sei bem, sem mencionar o dolorido beliscão no antebraço, aplicado com justiça por minha mãe.
Depois, com três anos, morando na mesma casa da rua Dona Luiza, então estranha e desolada região de Santa Maria, um surto de paratifo esvaziaria a rua, normalmente cheia de crianças. Segundo meus pais, os médicos da pacata cidade passaram a revezar-se na modesta residência-padaria, fazendo o que ainda hoje se denomina conferência médica.
Mas, não se entendiam. Alguns inclinavam-se por banhos mornos. A água daqueles tempos era um perigo. Outros discordavam: água, não! Houve quem recomendasse banhos frios. Sabiamente minha mãe decidiu: nada de banho! Passei quase um mês sem banho algum e fiquei curado! Não havia antibióticos na Santa Maria dos anos 40. Os tratamentos eram empíricos e caros e, no intervalo das visitas médicas uma que outra afamada benzedeira também comparecia.
Meus pais eram gente de posses modestas. Endividavam-se com minha doença. Viviam (mal) de pequena padaria alojada no subsolo da moradia. Meu pai levantava às três da madrugada fazia o pão e saia a distribuí-lo, na carroça coberta com lona, puxada por velho pangaré.
Manhãzinha chegando, nossa mãe abria a lojinha e vendia o pão para a vizinhança. Alfaiate vizinho, era pai de futuro colega na FMUFPR, Walter Goetz, depois anestesista em Ponta Grossa. Já o tenente Adonaldo seria pai de outro médico também formado em Curitiba, dez/55 na mesma faculdade, Glênio José Barbosa, cirurgião geral e gineco-obstetra. Glênio nasceu em 1932, Santa Maria, RS, e morreria em 2014, 82 anos, Curitiba. Foi tenente-coronel médico e diretor do Hospital da PM do PR.
Com a possível exceção minha, de Walter Goetz e de Glênio Barboza, o restante das crianças da travessa, engrossaram as alarmantes estatísticas de taxa de mortalidade infantil brasileira. Ainda lembro de sentar-me na soleira da porta da padaria, pálido, fraco e emagrecido, cabelos compridos, apanhando o sol da convalescença. 3206