Quando em 1981, numa das canções do álbum “Samba Partido e Outras Comidas”, Bezerra da Silva canta os versos:
Assim que eu cheguei no pagode
Fui logo obrigado a deitar no chão
Saiu um tremendo tiroteio
Derrubaram um valentão
Deram um tiro num PM
E roubaram o camburão
Tinha até metralhadora
E a rapaziada com disposição
Logo se percebe que a cena em questão não descreve amenidades e gentilezas. Nota-se que o cenário destinado a um ambiente festivo, o pagode, é transformado antes mesmo da chegada do narrador dos fatos, visto que sua primeira ação, mesmo que a contragosto, é deitar-se no chão em busca de proteção.
Seriam apenas os versos de uma canção, não fossem as canções reveladoras da vida real que nos cerca. Elas são capazes de nos conduzir a sentimentos tanto sublimes quanto carnais, nos anestesiam, nos provocam, trazem respostas mas também questionamentos. A credibilidade de uma canção se dá em muito por sua capacidade de nos tocar por aquilo que ela expõe, o que por sua vez acontece pela capacidade do compositor de transmitir aquilo que muitas vezes vivenciou, e aí se dá o ponto crucial da questão.
Os versos cantados por Bezerra da Silva denotam um ambiente “infelizmente” típico dos subúrbios brasileiros. A festa informal e popular, ambiente em que minimamente o cidadão comum consegue mesmo que brevemente se afastar da crueza e realidade de sua vida, é dissolvida pela brutalidade do conflito entre Estado e poder paralelo. Brutalidade diária que se costuma afastar para debaixo dos tapetes, morros ou trilhos. Ela que sempre esteve lá, escondida por quem não a quer ver, seja por falta de interesse ou fins eleitoreiros, mas que sempre terá uma canção a lhe revelar.
Já as canções de amor trazem à tona sentimentos íntimos vividos em ambiente particular, mas que ao serem expostos a plateias que lhe cantam a plenos pulmões logo revelam a coletividade de suas existências. Marília Mendonça canta:
Infiel
Agora ela vai fazer o meu papel
Daqui um tempo você vai se acostumar
E aí vai ser a ela a quem vai enganar
Você não vai mudar
Ela descreve uma família desfeita por um ato de infidelidade, mas que ao mesmo tempo gera outra família a caminho de uma nova traição, pois o círculo vicioso será mantido. E assim os sentimentos individuais e coletivos vão sendo cantados e expostos ao mesmo tempo que ocultados por trás de cortinas e falsidades sociais.
A pergunta que fica é: por que razão nos incomodamos com certas canções? O que elas revelam ou desmentem? Políticas sociais, segurança pública, terapia, investimentos em cultura e educação?
Seja onde for, não será difícil de encontrar um coração que sangre pela dor de um amor não correspondido, ou pela bala de um fuzil. Cabe a nós perceber o que determinada canção tem a nos dizer.
*Clairton Rosado é doutor em Música e programador musical da rádio Som Maior