Eles são o avesso. Se os outros dez usam os pés, ele trabalha com os braços. Se os outros dez dão a pancada, ele amacia com os dedos. Ele é o amor pela bola. Ele é o guerreiro isolado de um contra todos. Ele tem a perspectiva oposta. Ele tem um dia. Goleiros, ah os goleiros...
O primeiro goleiro que conheci na vida chamava-se Carlos. Era 1986. Fazia calor. A casa pequena lá na Cidade Nova em Rio Grande estava repleta de caixas empilhadas. A primeira das duas mudanças para Santa Catarina estava por vir. A pequena TV em preto e branco mostrava os lances da Copa do Mundo. Meus quatro olhos (sim, já repousavam óculos pesados sobre nariz e orelhas) procuravam ansiosos aqueles lances. Brasil x França.
Carlos foi um azarado. Poxa, a bola bateu nas costas dele e entrou. Pela primeira vez, menino de 6 anos, senti a dor de uma eliminação em Copa. Lá do México, o primeiro ensinamento de tantos que a vida haveria de continuar oferecendo.
Daí veio Taffarel. Aquele grandalhão de preto e vermelho que defendia o time do coração da minha mãe. Lembro dele pegando praticamente tudo no começo de 89, nas finais da Copa União. O Internacional perdia o Brasileiro para o Bahia e a Libertadores, na semifinal, para o Olímpia. Dois dramas em que goleiros foram protagonistas. Que vida dura desses caras, continuei pensando. Ainda tinha Carlos na memória.
O Taffarel naufragou em 90 com a Seleção na Itália, mas em 94 deu a volta por cima. Os berros de "Taffarel, Taffarel, vai que é tua Taffarel" já mexiam naquele 94 mais pela magia da comunicação do que pela atração da bola. Nunca fui muito familiar do manejo com ela, talvez por isso nos times dos campinhos de terra e da quadra de cimento do Léa Lepper, lá em Joinville, eu era... zagueiro. Arriscava perto dos goleiros.
Ali aprendi, com o Taffarel, que a vida é assim, de altos e baixos, lado a lado, crueis e desbravadores. Descer e subir na vida são primos irmãos automáticos na gangorra arriscada dos goleiros. Talvez por isso até o uniforme deles seja diferente.
No rádio, o primeiro goleiro que entrevistei se chamava Ciro e jogava a terceira divisão do Campeonato Gaúcho em 95 pelo Sport Club Rio Grande. "Ciro, a grama tá boa?", perguntei no primeiro clássico da vida de repórter, um Rio Grande x São Paulo no Arthur Lawson. "Não sei, não provei ainda". A jocosa resposta, compatível à lastimável pergunta feita pelo precário repórter que eu era (e talvez continue sendo), me fez por um tempo irado com os goleiros. Ah, o Ciro ganhou aquele "Rio-Rita", 2 a 1.
Mas daí uma lembrança da infância, daquelas que vem por reflexo, me trouxe à terra de novo, me fez deixar de odiar os goleiros. Lembrei que a Martinha, minha prima e também minha madrinha de batismo (um amor de pessoa que hoje mora lá pelas bandas de Itapoá, a vida nos distanciou, uma pena) ela foi casada com um cara muito gente boa que foi um goleiraço, o Schneider. Sim, eu era uma criancinha quando o grande Schneider, aquele alemão que pegava tudo nos anos 80 no gol do Inter, frequentava a minha família.
Reabilitada a admiração pelos goleiros, cheguei a Porto Alegre em 2001. Lá fui eu com meu gravador tentar ser repórter na Guaíba, na grande chance da vida que me ofereceu o grande amigo Luiz Carlos Reche na lendária Caldas Júnior. Eu era um poste perto de gente como o próprio Reche, o Dal Pizzol, o Praetzel, o Andrezinho, o Gabardo, o Boaz (que me deu um baita conselho que pratico até hoje, mas não é assunto para agora), o Vidarte (que Deus o tenha, fera), o Darci, o Serginho, o Zé Alberto, credo, só craques. E daí conheci o Danrlei. Outro dia li que, além de deputado, ele já é um cara de 55 anos. Como assim? Participei de algumas entrevistas bem bacanas com ele.
Nessa época de Porto Alegre lidei com muito passado. Conheci muito passado ouvindo as histórias do Rogério Böhlke e do Mário Mazeron (dois dos mais brilhantes radialistas que conheci na vida). O Böhlke contava algumas histórias de um tal Manga. Lembrei disso hoje, manuseando arquivos de uma pesquisa que faço para um livro que demoro tanto a lançar, a concluir, a entregar, que aumento a suspeita sobre a capacidade do candidato a "autor" e "escritor". Na pesquisa encontrei essa foto abaixo: Manga e Clésio Búrigo. E de novo vi que o microfone e os goleiros sempre foram bons amigos. Se o Clésio, ícone maior do rádio de Santa Catarina, foi clicado nos anos 60 com essa alegria do lado de um monstro como o Manga, quem sou eu para duvidar de qualquer respeito mútuo entre as partes?
E olha que nem falei de Luiz e companhia, os bons craques da camisa 1 que conheci nesses dez anos aqui em Criciúma. Ah, a data de hoje, Dia do Goleiro, é aniversário do Manga, 81 anos desse cara que foi mágico na pequena área. Talvez tenhamos em comum essa individualidade por vezes tão difícil de definir, essa vida solitária, vocês goleiros na área, nós do microfone nas falas e relatos. Nosso respeito a vocês.